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Quais os riscos de fazer a transição de gênero por conta própria?

O tipo de estrogênio usado para anticoncepção e para reposição são muito diferentes - iStock
O tipo de estrogênio usado para anticoncepção e para reposição são muito diferentes - iStock

Henrique Cardoso Cecotti* Publicado em 20/04/2022, às 10h00

Muitas dúvidas passam pela cabeça de uma pessoa trans que decide fazer a hormonização. São incertezas sobre como é o processo, quais serão os resultados, quanto tempo vai demorar, se vai atingir essa ou aquela característica.

A primeira pergunta, e a mais básica, no entanto, é por onde começar. Uma dúvida simples, que fica muitas vezes sem resposta. Mesmo pessoas que trabalham com a própria população LGBT muitas vezes não sabem o caminho para a hormonização. Sem uma via clara para acessar o sistema de saúde, muitos começam a transição hormonal por conta própria, expondo-se a vários riscos.

Em muitas regiões brasileiras, encontrar um serviço que faça a terapia de transição de gênero é um verdadeiro desafio. No SUS (Sistema Único de Saúde), que atende a maior parte da população, a hormonização é oferecida em poucas unidades de saúde, muitas vezes por equipes despreparadas e com poucos recursos. E mesmo nos locais que a oferecem, ela está disponível apenas após os 18 anos, mesmo sendo liberada no Brasil a partir dos 16.

Com frequência ouvimos relatos de pessoas que usaram o esquema de hormonal de conhecidos, informações da internet e até mesmo a prescrição de anticoncepcionais de parentes para começarem a transição por conta própria. Muitos relatam que tiveram medo de fazer algo de errado, mas a necessidade de transicionar foi maior. Em um levantamento de 2019, 84% das mulheres trans brasileiras fazia ou já havia feito uso de hormônios sem prescrição médica.

E infelizmente, os riscos da terapia sem supervisão são muitos, podem ser graves e definitivos.

Em mulheres trans

Mulheres trans são o grupo que tem mais comumente usa hormônios por conta própria, principalmente anticoncepcionais, em parte pela facilidade de acesso a esse tipo de medicação.

Anticoncepcionais são medicações que contêm hormônios femininos - estrogênio e progesterona ou só progesterona -  que tem a finalidade de bloquear o funcionamento dos ovários, e assim, prevenir gestações. São fáceis de encontrar e baratos na maioria das vezes. O pensamento comum da maior parte das mulheres trans é: se são hormônios femininos, devem induzir características femininas.

E, se por um lado não estão erradas e de fato o estrogênio é o principal hormônio feminino e é ele que induz as características femininas, por outro, o tipo de estrogênio usado para anticoncepção e para reposição são muito diferentes. As pílulas frequentemente usam etinilestradiol, um estrogênio sintético, barato e com elevada potência contraceptiva, mas que tem alto risco de causar tromboses e derrames.

Por terem mais efeitos colaterais, essas medicações têm mais contraindicações, que podem passar despercebidas por quem faz uso sem acompanhamento. Tabagistas, pessoas com antecedentes de tromboses, cânceres e doenças do fígado e até enxaqueca podem ter contraindicação absoluta ao uso de etinilestradiol.

Boa parte do risco de tromboses, tão temidas por mulheres trans, vem na verdade do uso de etinilestradiol. A hormonização com doses adequadas de hormônios idênticos aos humanos, mais modernos, tem um risco muito inferior.

Já a progesterona, presente em muitas pílulas, não desempenha nenhum papel no surgimento de características femininas em mulheres trans. Para elas, ela só soma efeitos colaterais de inchaço e alterações metabólicas, sem outros benefícios.

Um outro problema da automedicação vem também das doses utilizadas. É muito comum a ideia de quanto mais hormônio, maior ou mais rápido é o resultado. Na verdade, uma vez que se use a dose correta de hormônio, os resultados dependerão muito mais do tempo e da genética que da dose.

Doses altas, no entanto, mesmo de hormônios naturais, podem ainda causar problemas como aumentos de prolactina, um hormônio que estimula a produção de leite, além de também aumentar o risco de tromboses. Algumas mulheres chegam de fato a produzir leite, o que deixa muitas assustadas e pode levar a investigação de nódulos produtores do hormônio na hipófise.

O uso de hormônios por conta própria na adolescência pode, ainda, levar ao fechamento precoce das cartilagens de crescimento com perda de altura na vida adulta. Outros efeitos, como piora dos triglicérides, aumento da glicemia, infartos e derrames, podem acontecer quando os hormônios incorretos são usados ou em pessoas com contraindicações.

Em homens trans

O acesso de homens trans a testosterona é um pouco mais difícil. A venda da medicação em farmácias é controlada, diferentemente do que acontece com os anticoncepcionais.

Infelizmente, esse controle maior leva, muitas vezes, à compra, no mercado paralelo, de medicações de marcas e fornecedores duvidosos, com risco de uso de testosteronas que não têm a dose declarada ou com contaminantes.

Mesmo quando a medicação é a correta, mais uma vez, o problema está na dose. A testosterona é um hormônio potente, que causa modificações corporais relativamente rápido. Além das mudanças corporais que são visíveis, a testosterona pode causar efeitos que só podem ser detectados por exames.

O efeito colateral mais importante com doses altas é o aumento do hematócrito – índice do hemograma que mede a quantidade de glóbulos vermelhos no sangue. Embora esse aumento seja esperado, alguns podem ter uma elevação excessiva, o que torna o sangue mais espesso e viscoso. Isso aumenta muito o risco de formação de coágulos e tromboses, além de forçar o coração e dificultar a chegada do sangue em órgãos com vasos muito finos como rins e retina.

Uma peculiaridade do acompanhamento de homens trans é que mesmo doses de testosterona consideradas adequadas para a maior parte das pessoas podem causar aumento excessivo de hematócrito em alguns. Por isso, o monitoramento frequente e individualização das doses é tão importante.

Doses excessivas pode causar, ainda, outros problemas como aumento de pressão, agressividade, e alterações de colesterol, glicemia e aumento do risco de infarto.

Por onde começar?

A primeira coisa a se fazer quando se quer iniciar a hormonização cruzada é, sem dúvida, procurar um médico. Apenas ele vai saber dizer se cada pessoa tem ou não alguma contraindicação ao uso de qualquer tipo de hormônio e qual o tipo e dose mais adequado.

Embora o endocrinologista seja o medico mais especializado para iniciar a hormonização e fazer o acompanhamento, médicos de família e clínicos gerais que trabalham em unidades básicas de saúde (UBSs) podem perfeitamente iniciar e fazer o acompanhamento de pessoas trans ao longo de toda a vida. Esses devem ser os primeiros profissionais a serem procurados quando se decide pela hormonização. Mesmo que não estejam capacitados para o acompanhamento, eles podem referenciar a pessoa aos centros especializados onde ela receberá o cuidado adequado.

O acompanhamento para a transição é um direito de toda pessoa trans e o SUS oferece todo o tratamento, desde exames, consultas médicas, psicológicas até as cirurgias de redesignação e plásticas necessárias (em centros especializados).

Infelizmente, existe ainda no Brasil uma escassez importante de profissionais capacitados no atendimento da população trans, especialmente no interior e em cidades menores. Uma pessoa trans que tem seu atendimento negado pode vir a evitar procurar serviços de saúde no futuro e atrasar o diagnostico de diversas doenças.

A boa notícia é que esse cenário vem mudando. Hoje a prefeitura de São Paulo oferece cursos online de capacitação para médicos de familia interessados em realizar a hormonização nas UBSs, além de ter desenvolvido um protocolo próprio para o atendimento da população trans e fornecer medicações adequadas.

Uma lista com as unidades de atendimento, conhecida como Rede Sampa Trans, é atualizada periodicamente e pode ser encontrada no site da prefeitura. Uma lista de locais em outras regiões do país pode ser encontrada no site da Associação Nacional de Travestis e Transexuais.

* Henrique Cardoso Cecotti é endocrinologista