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Covid-19 pode causar redução de testosterona, mas repor não é solução

Mesmo casos leves de Covid-19 podem ter impacto no aparelho reprodutor masculino - iStock
Mesmo casos leves de Covid-19 podem ter impacto no aparelho reprodutor masculino - iStock

Homens infectados pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) podem sofrer alterações na função dos testículos, notadamente uma diminuição em níveis hormonais como os de testosterona, além de sofrer prejuízos na função dos espermatozoides. E isso pode ocorrer inclusive em indivíduos que desenvolveram sintomas leves da Covid-19.

O aviso é do urologista Jorge Hallak, professor livre-docente e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), do Grupo de Estudo em Saúde Masculina do Instituto de Estudos Avançados da USP e do Instituto Androscience, Centro de Ciência e Inovação em Andrologia.

Ele afirma que ainda é cedo para saber até que ponto esses prejuízos podem interferir na fertilidade do homem, e por quanto tempo, mas é importante que médicos e pacientes tenham essa informação, até porque medidas como receitar injeções do hormônio podem ser um “tiro no pé”.

Impactos no trato reprodutivo masculino

Desde o início da pandemia, Hallak e pesquisadores de diferentes departamentos da USP (como os de patologia, geografia e matemática, entre outros) têm estudado os impactos do Sars-CoV-2 na saúde dos homens – eles são mais suscetíveis às formas mais graves da doença que as mulheres, e a mortalidade é ao redor de 49% mais alta para eles, independentemente da faixa etária.

Portas de entrada para o vírus

Ao entrar no organismo, o vírus ataca múltiplos órgãos, o que inclui o trato reprodutivo. “O que temos observado é que o SARS-CoV-2 tem uma predileção pelos testículos”, comenta o especialista. Isso porque, depois dos pulmões, os testículos são o órgão com maior número dos chamados receptores ACE2, utilizados pelo vírus para aderir às células.

Além disso, os testículos contam com uma proteína, chamada de TMPRSS2, que faz a ativação desses receptores ACE2 nas células. Em outros órgãos, ainda que o ACE2 esteja presente, esse receptor não está apto a deixar o vírus entrar na célula por não ter sido ativado.

De acordo com Hallak, os testículos são até mais propensos a serem órgão-alvo do vírus do que os rins, que aparecem em terceiro lugar em número de receptores.

Análise do sêmen

Nos testes laboratoriais de sêmen realizados no Laboratório de Andrologia do Androscience, e nos testes hormonais realizados no Hospital das Clínicas da FMUSP com pacientes com doença moderada e na fase aguda da Covid-19, os pesquisadores também tentaram identificar a presença do vírus no sêmen ejaculado.

Obter as amostras não foi fácil, já que o cansaço provocado pela doença é tanto que dificultava a coleta por meio da masturbação. De qualquer forma, o estudo não encontrou evidência do vírus no sêmen dos pacientes.

Células produtoras de hormônio e epidídimos

Em outra etapa das pesquisas, desenvolvidas pelo Departamento de Patologia da FMUSP, observou-se que o novo coronavírus pode causar lesão nas células que produzem testosterona, e um desarranjo nas células precursoras dos espermatozoides, mas em menor intensidade; além de também provocar uma inflamação nos epidídimos em 54% dos pacientes assintomáticos internados em enfermaria.

Os epidídimos são estruturas de 5 a 6 metros de comprimento e que são responsáveis por inúmeros processos bioquímicos necessários para a aquisição de motilidade e capacidade de fertilização dos espermatozoides. Eles funcionam como sentinelas dos testículos, protegendo-os de infecções bacterianas. Ficam localizados na região superior e posterior de ambos os testículos, e é neles que os espermatozoides ficam armazenados por algum tempo antes de serem liberados para ejaculação.

“As alterações ultrassonográficas foram encontradas em pacientes com menos de 45 anos de idade que tiveram sintomas leves ou moderados da doença”, ressalta Hallak. Vale mencionar que os pacientes não apresentavam nenhum sintoma sugestivo desse tipo de inflamação, como dor ou inchaço escrotal.

Como as descobertas são recentes, ainda não é possível saber quanto tempo leva para que a função testicular seja restabelecida após o paciente se curar da Covid-19. Além disso, é preciso que os resultados obtidos pela equipe da USP sejam confirmados em estudos maiores e com outras populações.

Pacientes suscetíveis

Mas Hallak acredita que o impacto pode ser importante para homens que já têm algum grau de alteração na função testicular ou subfertilidade: “A grande maioria sem conhecimento, pois o espermograma simples não dá as informações necessárias para o entendimento da função reprodutiva masculina”, comenta.

Grupos de pacientes suscetíveis a alterações de função testicular de base incluem, mas não estão limitados a: portadores de varicocele (varizes escrotais), indivíduos com ingesta alcoólica elevada, usuários de maconha e outras drogas (lícitas ou ilícitas), pacientes que usam de forma crônica medicamentos como corticosteroides, imunossupressores e alguns antidepressivos, indivíduos com doenças genéticas (como microdeleções do cromossomo Y e alterações do cariótipo), entre outros. “Muitos homens têm doenças, fatores de risco ou cofatores com tendência maior à infertilidade masculina e não sabem”, relata.

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Por que injeções de testosterona são “tiro no pé”

Os limites normais de testosterona no sangue dos homens variam entre 300 e 1.000 ng/dL. Hallak diz que, nos pacientes com Covid, foram encontrados níveis mais baixos, o que pode condizente com o diagnóstico de hipogonadismo (deficiência de testosterona) transitório.

Os sintomas da falta de testosterona podem ser muito variados, e incluir falta de libido, dificuldades para obter ou manter a ereção, ausência de ereção matutina, desânimo, problemas de memória e cansaço (inclusive ao acordar), irritabilidade exagerada etc.

Infelizmente, muitos profissionais de saúde têm receitado formulações e aplicações à base de testosterona ou seus derivados, de forma indiscriminada, para homens que apresentam dosagem reduzida sem que sejam avaliados os fatores de estilo de vida, hábitos doenças crônicas e sedentarismo, e o contexto em que esses homens estão inseridos. Esse é o grande temor do professor da FMUSP: “Receber o hormônio externamente inibe ainda mais a função testicular, bloqueia o eixo hormonal, e pode provocar uma lesão ainda maior do que a causada pelo novo coronavírus”, alerta.

Restabelecimento da função

O médico afirma que a conduta mais adequada, nesses casos, é esperar o restabelecimento da função testicular com tratamentos que atuam como fornecimento de “matéria-prima” para a produção de testosterona, além de medidas de estilo de vida, que também têm impacto positivo.  

Da mesma forma, indivíduos que, depois da pandemia, quiserem se reproduzir e não conseguirem, mesmo após o “espermograma simples”, não devem se desesperar e procurar logo auxílio em reprodução assistida, já que a função espermática tem grandes chances de se recuperar dentro de alguns meses.

É possível que, a partir desses estudos, perguntar sobre a Covid se torne rotina para os casais com dificuldades para ter filhos.

Outros vírus também têm impacto

É importante destacar, ainda, que o Sars-Cov-2 não é o único vírus a afetar o trato reprodutivo masculino. Embora todo mundo associe a caxumba e as infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), como a gonorreia, à infertilidade, outras doenças também podem ter impacto.

Um estudo publicado no início deste ano no periódico Asian Journal of Andrology lista 27 vírus, como Zika, Ebola e Influenza, que podem afetar o sistema reprodutor masculino, além do coronavírus. O trabalho foi assinado por Hallak e vários outros especialistas da USP, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e da Universidade Clermont Auvergne, na França.

“Estamos abrindo um novo capítulo que liga a virologia e a andrologia (estudo da saúde do homem)”, menciona Hallak. Quem sabe, a partir do interesse despertado pela Covid-19, novas pesquisas surjam nessa área, o que pode beneficiar os casais que tentam engravidar sem sucesso, além do entendimento e tratamento do hipogonadismo masculino.

Em relação ao coronavírus, tudo indica que os homens têm mais um motivo para se proteger, pois ser homem constitui por si só um novo fator de risco. A tríade uso de máscara, medidas de distanciamento social e lavar as mãos, nunca foi tão importante, enquanto aguardamos pela vacina.

Veja também: hábitos que podem interferir na fertilidade masculina

Tatiana Pronin

Tatiana Pronin

Jornalista e editora do site Doutor Jairo, cobre ciência e saúde há mais de 20 anos, com forte interesse em saúde mental e ciências do comportamento. Vive em NY e é membro da Association of Health Care Journalists. Twitter: @tatianapronin