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É hora de se aposentar? E como preparar a mente para a mudança?

Jim Carrey anunciou sua aposentadoria aos 60 anos de idade por “já ter feito o bastante” - Wikimedia Commons
Jim Carrey anunciou sua aposentadoria aos 60 anos de idade por “já ter feito o bastante” - Wikimedia Commons

Leo Fávaro* Publicado em 15/04/2022, às 14h00

Você certamente conhece alguém que já poderia ter se aposentado, mas continua trabalhando, ou que gostaria de se afastar de vez do trabalho, mas precisa continuar na lida. Exemplos de famosos também fazem a gente refletir: há algumas semanas, o ator americano Jim Carrey anunciou sua aposentadoria aos 60 anos de idade por “já ter feito o bastante”, enquanto o também ator Bruce Willis, 67, se afastou das telas depois de ser diagnosticado com afasia. Por outro lado, Madonna (63 anos), Mick Jagger (78), David Hockney (84) e outras celebridades continuam trabalhando mesmo depois de uma vida dedicada ao ofício. Afinal, qual o momento certo de se aposentar?

Antes de pensar numa resposta, é importante considerar que desde muito cedo somos habituados a fazer, a trabalhar e a produzir. Sthéfany Alvarenga, psicóloga e mestranda em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Espírito Santo, explica que na primeira infância, os bebês usualmente recebem reforço positivo ao fazerem suas necessidades fisiológicas e, posteriormente, na escola, as crianças são celebradas pela aquisição de habilidades, como ler e escrever.

Depois, quando estamos crescidos, surgem os trabalhos escolares e o desenvolvimento das relações interpessoais e, então, as demandas do emprego. Trata-se de um processo natural de construção social, com o qual também surge um senso de produtividade, que nos acompanha ao longo do restante da vida. É nessa esteira que está o trabalho.

“Nós trabalhamos pela necessidade de ter dinheiro para nos mantermos, para executar planos, para realizar sonhos. Mas também produzimos por uma necessidade de continuar nos relacionando, e isso persiste em nossas vidas de diversas formas”, avalia Sthéfany, que também é especialista em neurociências. Neste sentido, o ofício é tanto a forma de gerar sustento quanto um meio para estabelecer vínculos, colocar habilidades em prática e  desempenhar funções com objetivos determinados.

Além do salário, o que se recebe com o trabalho é também uma percepção de “utilidade”, que, junto com sensações positivas – como motivação, alegria e companheirismo, nos motiva a continuar trabalhando (o que também é influenciado pela necessidade financeira em alguma proporção), apesar de situações estressantes ou negativas.

Qual é o melhor momento para se aposentar?

Compreender quando se aposentar é adequado deve levar em consideração experiências, expectativas e realidades individuais. O jogador de futebol americano Tom Brady, 44 anos, anunciou no começo do ano sua aposentadoria, mas poucos dias depois voltou atrás e disse que continuaria jogando por mais uma temporada. Ao revelar sua “desaposentadoria”, o atleta publicou em seu Instagram: “Nos últimos dois meses percebi que meu lugar ainda é no campo e não nas arquibancadas. Essa hora vai chegar. Mas não é agora. Eu amo meus companheiros de time e amo minha família que me apoia. Sem eles, nada disso seria possível. Estou voltando para minha 23ª temporada em Tampa. Temos negócios inacabados”.

Mesmo sendo o maior jogador de todos os tempos da modalidade, com fortuna e com uma idade considerada avançada para um atleta de elite, ele decidiu continuar no campeonato. A própria publicação do marido de Gisele Bündchen deixou claro os fatores que o fazem continuar jogando: paixão pelo que faz, apoio familiar, boa relação com os colegas de trabalho e ambições pessoais relacionadas ao esporte.

Brady é o exemplo perfeito para mostrar que não há idade certa para se aposentar: deixando de lado questões financeiras e previdenciárias, ele é novo para uma pessoa comum não trabalhar mais, mas velho para um atleta continuar desempenhando sua função. Assim, enquanto alguns podem se satisfazer ao deixar o trabalho depois dos 65 anos, outros podem, já aos 50, contar ansiosamente o tempo restante para que isso aconteça. A idade, então, não é um fator absoluto para determinar a aposentadoria, que pode ser mais bem orientada por perguntas como:

  • Sinto satisfação e prazer no meu trabalho, apesar do estresse?
  • As atividades que desempenho fazem com que eu me sinta produtivo?
  • Consigo descansar ou me recuperar do desgaste do trabalho quando relaxo ou tiro férias?
  • Tenho segurança financeira para poder deixar de trabalhar, ainda que seja necessário ajustar o estilo de vida?
  • Sinto que meu corpo ainda tem condições físicas para continuar trabalhando e para fazer as atividades de que gosto?
  • Tenho disposição e disponibilidade para fazer coisas que me dão prazer fora do serviço (sair com amigos ou com a família, viajar, ler, ir ao cinema, praticar esportes)?
  • Sinto-me integrado à equipe e gosto das pessoas que trabalham comigo, mesmo que divergências sejam comuns?
  • Há outras coisas que eu preciso ou gostaria de fazer fora do ambiente do serviço (cuidar de um familiar, fazer cursos, viajar, desenvolver habilidades artísticas, realizar trabalho voluntário)?

Ao refletir sobre esses aspectos, é possível observar com mais clareza quais são as motivações que fazem você continuar no emprego, ponderando perdas e ganhos para tomar a decisão. Sentir-se satisfeito, alegre e produtivo é fundamental para que o trabalho continue sendo benéfico, ao passo que o estresse contínuo, sobretudo depois do expediente, e a sensação de trabalhar por obrigação podem indicar que a aposentadoria é uma boa escolha. Além disso, é importante levar em consideração aspectos financeiros, como dívidas em aberto, compromissos assumidos, necessidade de readequar os gastos mensais e a própria desvalorização do salário frente aos aspectos econômicos e políticos.

Confira:

O corpo fala

Depois de 20 anos desfilando, a supermodelo Gisele Bündchen, com 35 anos à época, decidiu parar de cruzar as passarelas. Em entrevista à Folha de S. Paulo, Gisele explicou o motivo: “Aprendi a sentir meu corpo. Automaticamente meu corpo fala se o que faço vale a pena, e ele pediu para parar. Eu respeito meu corpo, tenho um privilégio de poder parar”. De fato, o corpo pode dar sinais de que o emprego interfere na sua saúde, abrindo caminhos para considerar a aposentadoria como uma opção.      

Alterações no humor, ansiedade, irritabilidade, falta de disposição, insônia ou sonolência excessiva podem ser os primeiros sinais a surgir quando o trabalho se torna um fardo. O sistema imunológico pode ficar debilitado e, então, o corpo fica mais vulnerável a diversas doenças. Em situações mais graves, alterações no padrão alimentar, como alimentação excessiva ou bem restrita, podem refletir no ganho ou na perda de peso decorrente do desgaste laboral. Outras manifestações físicas que podem indicar que há algo errado são dores no corpo, dor de cabeça, cansaço, queda de cabelo, diarreia ou constipação.

Todos esses sinais podem caracterizar burnout, que é o esgotamento físico, mental e emocional decorrente do trabalho, e indicar que o serviço já se tornou prejudicial. Nesses casos em que há reações do corpo, o mais adequado, antes de tudo, é procurar um médico para avaliar sua saúde e ter certeza de que não há outras causas. Ele poderá indicar o tratamento mais adequado para cada caso. Além disso, a orientação de um psicólogo pode ajudar tanto a lidar com a situação que vem causando esse esgotamento quanto a tomar a decisão de forma mais segura em relação a continuar ou não no trabalho.

A transição pode ajudar

Sthéfany Alvarenga analisa que a transição entre o trabalho e a aposentadoria é mais positiva quando feita de forma gradual: “Se você é profissional autônomo ou tem a possibilidade de alterar sua jornada laboral, diminuí-la aos poucos pode diminuir o impacto de uma mudança abrupta”. Assim, a psicóloga sugere reduzir a carga horária de trabalho mensalmente, passando, por exemplo, de 10 horas para oito horas trabalhadas por dia; no mês seguinte, essa jornada é reduzida para seis horas diárias, e assim até o momento de não trabalhar mais.

Outra dica que a psicóloga ressalta é planejar o que fazer após a aposentadoria ao longo da vida funcional, como um plano de aposentadoria, considerando o que lhe dá prazer. “Se você gosta de artes, pode aos poucos fazer cursos de pintura ou bordado para que depois da aposentadoria você se sinta mais habituado àquilo. O mesmo vale para aprender a tocar um instrumento, que pode animar os encontros da família, ou estudar uma área de conhecimento e isso ser conteúdo de um blog. Esse é um ótimo momento para praticar seus hobbies”.

O sentimento de menos-valia, caracterizado por angústia e sensação de inutilidade, pode surgir depois da aposentadoria, desencadeado por fatores como a perda do espaço social, a alteração da rotina e o rompimento da associação que fazemos entre produtividade e trabalho. Para lidar com isso, a especialista em neurociências destaca que é importante realizar atividades que sejam tão satisfatórias quanto era o ofício.

“Em vez de acordar cedo e se arrumar para trabalhar, você pode acordar no mesmo horário para manter a rotina, mas fazer outras atividades, como ginástica, esportes, curso de idiomas ou de culinária, quem sabe até uma graduação”, exemplifica. Integrar grupos de voluntariado, ONGs e projetos sociais são outros caminhos de manter-se ativo e produtivo, assim como ajudar individualmente pessoas que precisam de algum tipo de suporte, que pode ser desde fazer companhia até realizar aquele seu trabalho habitual, mas a um valor social para ajudar alguém.

Também é muito importante manter os vínculos sociais, como café ou jantar com os amigos, encontros com os colegas, jogar futebol com os ex-parceiros de trabalho. Esse tipo de compromisso é tão importante quanto cuidar da saúde física”, destaca.

Essa rotina social ao lado de pessoas que lhe fazem bem, para ter momentos prazerosos, para conversar e se distrair são determinantes para evitar sensações negativas que podem surgir com o afastamento do trabalho, como tristeza e desânimo, e até mesmo evitar depressão, que é atinge com mais frequência pessoas a partir dos 60 anos, que é a idade média em que se pensa em aposentadoria.

*Leo Fávaro é acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Espírito Santo

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