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Síndrome do intestino irritável não tem cura, mas pode ser controlada

Quem sofre com este problema convive com desarranjos intestinais frequentes, prisão de ventre e diarreia - iStock
Quem sofre com este problema convive com desarranjos intestinais frequentes, prisão de ventre e diarreia - iStock

Cármen Guaresemin Publicado em 17/08/2021, às 10h00

A síndrome do intestino irritável (SII) é um distúrbio do funcionamento intestinal que não está ligado necessariamente a uma lesão, alteração estrutural ou inflamação, mas que causa muito desconforto e dor, e interfere diretamente na qualidade de vida. Quem sofre com este problema convive com desarranjos intestinais frequentes, prisão de ventre, diarreia, cólicas e sensação frequente de estufamento abdominal. A síndrome pode ser difícil de identificar por não ser acompanhada de mudanças estruturais significativas no intestino.

Trata-se de um problema crônico que não tem cura, que pode se manifestar em ciclos e a pessoa pode passar períodos da vida sem sentir incômodo. A SII é classificada em subtipos com predominância de constipação (SII-C) ou diarreia (SII-D) e um padrão alternado ou misto (SII-M). Os sintomas acometem aproximadamente 10% a 15% da população mundial.

O problema é predominante no sexo feminino sugerindo que os hormônios sexuais desempenham um papel no processo da doença. Mulheres com SII têm uma percepção aumentada da sensibilidade somática e visceral, ligada temporalmente a uma diminuição dinâmica nos níveis de hormônios ovarianos durante a menstruação. Também há sensibilidade retal – que envolve desconforto, urgência e desejo de defecar – que varia com o ciclo menstrual em mulheres com SII, em contraste com controles saudáveis. Não é incomum que pessoas com SII também tenham intolerância à lactose. Porém, ao contrário do que alguns pacientes possam pensar, a SII não se transforma em câncer.

O culpado é o cérebro

Ao contrário do que muitos pacientes acreditam, a SII não é causada pela alimentação, mas pode ter os sintomas piorados por ela. Cristine Lengler, gastroenterologista do Fleury Medicina e Saúde e membro-fundadora do Grupo de Estudos da Doença Inflamatória Intestinal do Brasil (Gediib), explica que é a síndrome do intestino irritável é uma doença funcional na qual o principal componente é a alteração do eixo cérebro-intestino. Sim, muitos podem achar que os alimentos são os vilões, mas, na verdade, é o cérebro o principal ator neste drama.

As síndromes funcionais são como grandes elefantes, se você estiver muito perto só vai conseguir ver um pedaço. Alguns alimentos podem, sim, causar gatilhos mais exacerbados, o que facilita às pessoas realizarem essas associações. Mas nem todos têm as mesmas reações aos alimentos. O convencimento, que é a parte mais ‘difícil’, passa por uma única estratégia, que é a educação. Por isso a necessidade de se ocupar as mídias com essa agenda”, afirma o psiquiatra Eduardo de Castro Humes, Chefe da Seção Técnica de Psiquiatria do Hospital Universitário da USP.

Cristine concorda, afirmando que o alimento não é o gatilho mais importante, ele dispara o sintoma, mas não causa o problema. Ela conta que o fator essencial na síndrome são as alterações de motilidade mediadas pelo sistema nervoso central:

Pessoas com SII têm o intestino com uma sensibilidade maior. Por exemplo, uma quantidade de gases que para alguém sem o problema seria normal, para quem tem a síndrome dá a sensação de estufamento".

Ela explica que o paciente tem uma sensibilidade exacerbada, chamada de hipersensibilidade visceral. Nessas pessoas, a movimentação do intestino fica alterada, seguindo o comando que vem do cérebro. E o cérebro de quem tem SII, quando associado a fatores estressores, dá uma resposta alterada, liberando substâncias que, no intestino, vão provocar hipersensibilidade e sensação de motilidade. E essas alterações realimentam o cérebro com estímulos, aumentando a sensação de dor. Ou seja, é um caminho de duas vias.

Alimentação piora o quadro

Porém, como alguns alimentos pioram o estado do paciente, muitos médicos aconselham a criar um diário onde tudo que é consumido é anotado. “Fazemos isso quando a pessoa está em tratamento, mas não melhora. Tentamos identificar alimentos que fazem mal para ela. Ou seja, é caso a caso, não há uma fórmula que vale para todos. É individual, conforme sintomas e evolução. Como falei antes, a alimentação faz parte do tratamento. Há casos nos quais conseguimos identificar um alimento e o tirarmos, mas varia de um paciente para outro”, diz a médica.

Claro que o estresse e a ansiedade pioram o quadro, mas e quando surge uma diarreia em um dia que a pessoa está se sentindo normal? Humes diz que esta questão tem que ser vista individualmente, mas uma explicação frequente é que pessoas com síndromes funcionais podem ter a chamada alexitimia, termo usado para falar da dificuldade em entrar em contato ou descrever emoções, sentimentos e sensações corporais. Assim, muitas vezes, a pessoa pode estar passando por uma situação mais “estressante”, por exemplo, e não se percebe assim.

Para a gastroenterologista, o diagnóstico da síndrome não é difícil, mas requer a exclusão de algumas situações que podem causar sintomas semelhantes, uma vez que não há um exame específico que a diagnostique:

Uma vez excluídas causas orgânicas importantes, na ausência de alterações laboratoriais e com quadro clínico compatível, faz-se o diagnóstico da síndrome. Se uma pessoa tem diarreia com frequência, a motilidade está alterada e um teste que confirme isso não dará um diagnóstico. É preciso fazer alguns exames, como a colonoscopia ou calprotectina fecal, por exemplo. Porém, depende do sintoma, da história e do exame físico individual”.

Humes admite que os mecanismos envolvidos nos sintomas da SII não são claros. Isso por se tratar de uma síndrome funcional, ou seja, não é questão de uma alteração que podemos ver, como uma úlcera ou um tumor, por exemplo, mas uma mudança do funcionamento normal de um sistema. "Sabemos de fatores que podem contribuir com mais ou menos sintomas. Por exemplo, temos conhecimento que o cérebro controla, direta ou indiretamente, o funcionamento geral do organismo. Dependendo do estímulo, o intestino pode funcionar de maneira mais rápida (diarreia) ou mais lenta (constipação)".

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Síndrome do intestino irritável: o cérebro controla, direta ou indiretamente, o funcionamento geral do organismo - iStock

Intestino e cérebro

O psiquiatra explica que, quando estamos em alerta, o cérebro desencadeia o disparo da adrenalina que, por sua vez, gera uma aceleração do intestino. Quando éramos homens das cavernas, isso facilitava a fuga, e mantivemos essa resposta até hoje: “Uma das teorias, talvez a principal, para explicar a oscilação do funcionamento intestinal na SII é que ela se daria por uma exacerbação da resposta a esses mecanismos, e o cérebro teria um papel essencial nessa modulação”.

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Em grupos das redes sociais, pessoas que têm a SII comentam que muitas vezes os médicos parecem não levá-las a sério. Cristine rebate: “Como médica gastroenterologista, vejo muitos pacientes com síndrome do intestino irritável no meu dia a dia. Pessoalmente, não posso dizer que seja uma realidade de mau atendimento médico, no sentido de menosprezar a queixa do paciente, mas acho que muitos pacientes podem assim interpretar ao ouvirem do médico que se trata ‘apenas’ da síndrome do intestino irritável, quando, na verdade, estão tentando tranquilizar o paciente no sentido de que não é uma condição grave que possa colocar a vida em risco”.

Isso ocorreria porque os pacientes têm dificuldades em aceitar o diagnóstico? “As pessoas, de maneira geral, apresentam um grande estigma com diagnósticos de saúde mental, seja de síndromes psiquiátricas ou de sintomas psíquicos em geral. Quando falamos que um sintoma físico pode estar relacionado a um funcionamento psíquico, muitas pessoas interpretam como fraqueza ou falha de caráter, por exemplo, e não aceitam o diagnóstico. Mas, em geral, quando procuram um profissional de saúde mental, a parte mais difícil do convencimento já foi feita por outra pessoa, profissional ou familiar”, diz Humes.

Tratamento multifuncional

O ideal é que um tratamento psicológico ocorra em paralelo ao feito com gastroenterologistas e nutricionistas. Mas nem sempre é assim. Humes diz que gosta de fazer uma comparação com os pacientes:

Pergunto se eles tivessem uma fratura na perna, se só iriam ser operados e tomar remédios, ou se fariam fisioterapia também. A ideia de não fazer fisioterapia é muito similar à de não fazer psicoterapia para SII. Você pode melhorar, sim, mas talvez parte do potencial seja perdido”, alerta.

Mas como evitar estresse e ansiedade nos dias de hoje, com a maioria das pessoas vivendo em grandes cidades, com pandemia, redes sociais com haters, polarização política, desemprego e crise econômica? “Esta é uma importante pergunta, talvez a pergunta do Prêmio Nobel”, brinca Humes, acrescentando: “Mesmo a afirmação de que as grandes cidades pioram o quadro é controversa, elas com certeza aglutinam pessoas que são mais ansiosas, mas será que as pessoas mais ansiosas não buscam também por esses ambientes? Um problema que vemos frequentemente é que as pessoas estão cada vez mais inseridas em realidades virtuais em detrimento do contato humano, antes mesmo da pandemia”.

Para ele, o contato humano, um abraço de fato (não aqueles ao qual nos acostumamos e duram menos de dois segundos), olhar nos olhos das pessoas, apresenta, sim, um efeito importante na maneira que nos sentimos. Talvez ainda demore um pouco para termos isso novamente. Já sobre as redes sociais, que são excelentes em muitos aspectos, como dar voz a muitas pessoas que não conseguiriam se comunicar efetivamente, ao mesmo tempo criam situações nas quais a agressividade surge por não haver o filtro do olho no olho.

Lidando com estigmas

E como a pessoa que tem SII deve agir no trabalho? Deve falar abertamente aos superiores sobre o problema. Muitas já deram depoimentos em redes sociais dizendo que pararam de trabalhar, especialmente as que têm a SII-D, pois passaram por experiências constrangedoras, até mesmo no trajeto de casa ao trabalho.

“Os constrangimentos podem ocorrer em especial nas formas que apresentam quadros diarreicos (SII-D e SII-M). A maneira que cada um vai lidar com o impacto da síndrome depende inicialmente de como a própria pessoa lida com os sintomas. Se não conversarmos abertamente, não haverá a redução do estigma. Antigamente, a epilepsia (e as convulsões) era associada a importante estigma, com a abertura no diálogo, hoje é tratada de maneira mais natural. O estigma é real, mas deve ser combatido dentro das possibilidades de cada um”.

Outra dificuldade para quem tem a doença, é como agir com a família, já que sempre há alguém falando “isso é frescura”, “não é nada sério”, “pode comer isso que não te fará mal…” e assim por diante. Para Humes, o estigma é resultado do desconhecimento. Auxiliar as pessoas a melhorarem a capacidade de compreender os fenômenos é a melhor forma de ajudá-las a sair do ciclo de preconceito.

Uma frase comum que ouvimos sobre a síndrome é “você não vai morrer de SII, mas vai morrer com ela”. Então, como não há cura, quais os conselhos para se viver com o problema? Como em todas as síndromes funcionais, é essencial para o melhor controle que o manejo do quadro envolva o cuidado multiprofissional em diversas frentes, incluindo: gastroenterologia, nutrição, saúde mental e atividade física.

A maioria das pessoas com SII acaba tendo de tomar antidepressivos. Isto seria um tratamento padrão? Humes afirma que a decisão deve ser feita caso a caso, e a medicação serve, muitas vezes, para o momento específico. Uma parcela importante poderá, sim, se beneficiar do uso de remédios, mas não a maioria e nem todos os que tiverem indicação usarão em longo prazo (mais que dois anos).

Como foi dito várias vezes, o tratamento indicado pelos especialistas varia a cada caso, mas pode ser feito com medicamentos que diminuem a sensibilidade intestinal e reequilibram a microbiota. Mudanças na alimentação, atividade física e gerenciamento de estresse e ansiedade também colaboram para a melhora. Terapias complementares ajudam, em especial meditação, mindfulness, atividade física e também acupuntura mostraram efeitos importantes, desde que haja adesão do paciente aos cuidados propostos.

Dieta low Fodmap

A nutricionista funcional e fitoterapeuta Adriana Stavro explica o que é a dieta baixo Fodmap, quais alimentos as pessoas com SII devem evitar. 

Fodmap, sigla para oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos e pólios fermentáveis, é uma dieta que consiste em carboidratos fermentáveis que se encontram em uma grande quantidade de alimentos. Eles são dificilmente absorvidos pelo intestino delgado, produzindo gases e sintomas, como distensão abdominal, oscilação entre prisão de ventre, diarreia, fadiga, queda de energia e rendimento ao longo do dia, falta de disposição, queda na imunidade, dermatite atópica e queda acentuada de cabelo. Estudos apontam que a low Fodmap seja capaz de controlar os sintomas da SII, além de outras alterações gastrointestinais.

"Na prática, por um determinado período (em torno de 60 dias), alguns carboidratos deverão ser retirados completamente da alimentação, outros consumidos em pequenas quantidades, enquanto outros estão liberados para o consumo. Após o tempo de restrição, é iniciado o processo de reintrodução de alimentos no plano, pouco a pouco, fazendo a observação e avaliação dos sintomas conforme indicação do médico ou nutricionista", afirma Adriana.

Abaixo, a nutricionista faz uma lista com alimentos ricos e pobres em Fodmap:

Frutas ricas em Fodmapmaçã, pera, pêssego, manga, melancia, nectarina, cereja, abacate, sucos naturais, frutas secas, mel, frutose, xarope de milho, ameixa, lichia, uva passa, damasco e (leite de) coco.
Frutas pobres em Fodmapbanana, amora, carambola, uva, abacaxi, melão, kiwi, lima, laranja, tangerina, morango e maracujá.
Laticínios ricos em Fodmapleite de vaca, cabra ou ovelha, sorvete, iogurte (mesmo desnatado), queijo fresco e cremoso (ricota, cottage, cream cheese).
Laticínios e carnes pobres em Fodmapleite sem lactose, iogurte sem lactose, leite de soja, leite de arroz ou amêndoa, manteiga; queijos curados, como cheddar, parmesão, brie ou camembert; peixe, carne, frango ou ovo.
Hortaliças e leguminosas ricas em FODMAPalcachofra, aspargo, beterraba, brócolis, couve, alho, alho-poró, quiabo, cebola, couve-flor, ervilha, grão-de-bico, feijão, lentilha, alcachofra, couve-de-bruxelas, chicória, beterraba, repolho e quiabo.
Hortaliças e Leguminosas pobres em Fodmapbroto de bambu, cenoura, aipo, milho, berinjela, alface, cebolinha, pepino, abóbora, abobrinha, tomate, espinafre, batata, batata doce, e inhame,
Cereais e Massas ricos em Fodmappães, bolos, biscoitos ou cereais contendo trigo e centeio e cereais com xarope de milho.
Cereais e Massas pobres em Fodmapfarinhas, pães, macarrão e biscoitos sem glúten, produtos com farinha de milho ou mandioca, quinoa, arroz, tapioca, e macarrão de arroz.
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