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Chega de usar a pandemia como bode expiatório

A insatisfação com o trabalho já existia antes de a pandemia começar - iStock
A insatisfação com o trabalho já existia antes de a pandemia começar - iStock

Thatiana Cappellano Publicado em 10/06/2021, às 14h00

Tem-se falado muito sobre o tema da saúde mental dos trabalhadores. De fato, o assunto ganhou as páginas dos mais diversos veículos de comunicação. Não passam alguns poucos dias e já tem uma nova matéria ou análise no ar. Isso é muito bom, claro – afinal, o primeiro passo para conseguirmos lidar com uma situação é nomeá-la e, a partir disso, refletir sobre meios de superá-la.

Mas algo bastante preocupante está vindo junto com essa boa maré: uma generalização que atribui o fenômeno do sofrimento psíquico no trabalho às bruscas mudanças ocorridas em virtude da pandemia do novo coronavírus. Parece que um bode expiatório foi posto na sala, aquele que levará sozinho, em sua conta, toda a culpa e a responsabilidade por este infortúnio que, na verdade, vem de longa data.

Culpar a pandemia é um erro brutal, se não mesmo inocência ao analisar a questão ou falta de apuro de informações.

Minha tentativa aqui será a de indicar que é uma tremenda falácia ir por esse caminho. Afinal, o quadro do adoecimento mental não acabará quando a pandemia passar. Para que algo efetivo seja feito neste sentido, é preciso discutir e mudar as próprias bases históricas que constituem o mundo do trabalho.

Estamos dispostos a algo desta envergadura?

Eu não tenho certeza.

Como alguém que acompanha esta temática, observo que boa parte das iniciativas que as empresas estão implantando neste momento se localizam na ponta final da linha: pouco antes ou após o quadro da estafa se instalar. Estão sendo criados meios de medicalizar o sofrimento, mas não de interromper o ciclo que o forma.

Antes de começar a reflexão aqui proposta, sobre algumas das causas raízes deste fenômeno, é importante deixar claro: a pandemia intensificou a jornada de trabalho para uma parcela significativa dos trabalhadores a um limite quase insuportável [falamos disso na coluna do dia 24 de março, que você pode ler aqui]. É evidente que o aumento abusivo das jornadas, associado ao medo diante da morte que ronda muitos trabalhadores, especialmente os que atuam nos serviços essenciais ou em atividades precarizadas, trouxe impactos severos à saúde mental de quem trabalha. Isso é algo relevante e merece atenção. Não se trata, portanto, de minimizar o impacto da pandemia. Ele existe, é real, mas é melhor tratá-lo como a cereja do bolo do que como o pequeno mamífero ruminante. Béééé.

Prazer, sou o Dario

Quero falar para você sobre a história do Dario, nome fictício de um personagem real.

Formado em comunicação social e com duas pós-graduações, Dario investe constantemente em sua formação, acumulando muitos outros cursos em seu currículo. Ele trabalha em uma das maiores financeiras do país – um mercado que vem, há décadas, em franco crescimento aqui em terras brazucas.

No auge dos seus 30 anos de idade, Dario ocupa a posição de especialista em Branding, o que lhe confere um orçamento bem robusto para administrar, na casa de algumas dezenas de milhões de reais ao ano. Coisa de dar inveja em muita firma por aí.

Além de uma boa formação, Dario tem um perfil muito interessante para qualquer empresa. Primeiro, ele é o típico bicho corporativo [se diz um jovem medroso e, por isso, prefere a estabilidade do pacote de benefícios robusto que as grandes empresas oferecem]. Segundo, recentemente casou-se e, junto com seu marido, comprou o primeiro imóvel – motivo de orgulho e preocupação para o casal. Tal aquisição confere ao seu natural engajamento um quê a mais de disposição ao trabalho, afinal há aí uns bons anos pela frente até que consigam quitar o financiamento [e, sim, ele ser gay também é ótimo para a imagem da empresa hoje em dia]. Terceiro, ele é um empregado educado com seus pares, sabe se autogerenciar em meio a todas as demandas de patrocínio com as quais lida no dia-a-dia e não se importa com as constantes e entediantes viagens a trabalho.

Dario é tudo de bom. Dario gosta do que faz. Dario curte a firma em que trabalha. Dario sabe valorizar a empresa, a gestão e o modelo de negócios. Dario até gosta do seu chefe, olhe só. Dario é aquilo que muitas empresas chamam de talento (e que elas reclamam ser raro de se encontrar).

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E quando a promoção esperada, após muita dedicação, não vem? Ficar ou sair da empresa? - iStock

Mas Dario está em busca de novos ares.

Por quê?

Você pode achar que Dario é ingrato ou que ele não tem consciência da taxa histórica de desemprego  que assola o Brasil neste primeiro trimestre de 2021. Mas não se engane: Dario não cabe em nenhuma dessas explicações.

Dario, na verdade, tem sofrido de alguns dos males tradicionais do mercado de trabalho formal, e que são muito anteriores à pandemia.

Segue a thread...

Ao longo dos seus cinco anos nesta firma, ele acompanhou muitas movimentações no quadro de pessoas. Viu gente ‘do bem’ sair e gente ‘do mal’ ser promovida – dois clássicos do mundo corporativo. Também foi testemunha de casos em que alguns ‘merecedores’ ganharam novos cargos, desafios, projetos.

Como a quase absoluta totalidade dos empregados, Dario espera por sua vez de subir um degrau na infinita escalada da pirâmide corporativa [caminhada esta que, diga-se de passagem, torna-se cada vez mais difícil por vários fatores, tais como os inúmeros degraus “intermediários” nomeados por júnior, pleno e sênior e que ganham gradações com os numerais 1, 2 e 3; a diminuição do número de vagas; e a ineficácia quase total dos processos de avaliação de desempenho, que se prestam mais a “achatar a curva”¹ do que destacar os que têm mérito efetivo].

Ele se preparou para esse momento, investindo pesado na sua formação [como bom profissional que é, nosso protagonista seguiu fielmente a cartilha falaciosa de cultura contemporânea que grita em nossa face: “Seu sucesso só depende de você! Vai, não perde tempo! Se prepara”]. Aliás, o Gerente da área vinha sinalizado para ele, informalmente, com essa possibilidade há algum tempo.

Há pouco mais de dois meses, o coordenador para quem Dario se reportava “pediu pra sair”. Estafado pela jornada muito intensa, o rapaz com quem Dario tinha uma excelente relação optou por empreender [foi perseguir aquela ilusão básica e discursivamente construída de que, sendo dono do próprio negócio, ele não terá mais chefe e nem patrão]. Apesar de admirar o moço, Dario sabia que essa poderia ser sua oportunidade de ser promovido.

Poderia. Mas, não foi.

Aliás, quase nunca é.

A firma bacanuda em que Dario trabalha, aquela que o reconhece como um potencial talento, fez o que muitas empresas fazem: recrutou no mercado uma nova pessoa para a vaga de coordenação. Pouco depois da chegada do novato, o Gerente, percebendo que o rendimento de Dario caiu nos últimos tempos, teve a brilhante ideia de oferecer-lhe uma posição de coordenação, mas em outra área, bem distante da sua formação.

Conversando com Dario esses dias, numa daquelas trocas de áudios por WhatsApp noturnas, eu perguntei: “Mas, e aí? Você gosta da empresa, ela paga bons benefícios e um salário compatível. Hoje, você se motiva mais pela questão da grana por causa do financiamento do apartamento. Por que você tá relutando em aceitar a vaga?”. Confesso que fiz essa pergunta para ver se apelava à racionalidade do rapaz, afinal a lógica parece simples. Mas eu sei que não é assim que a banda toca.

A angústia que tem feito Dario ingerir uma quantidade demasiada de calorias – algo que por si só já lhe causa sofrimento – é a falta de reconhecimento. Ele respondeu à minha pergunta, com uma reflexão: “Eu não entendo da área de facilities (para a qual ele potencialmente pode ser transferido), eu não estudei para isso. O Diretor desta área nem sabe quem eu sou, vou ter que começar a demonstrar meu potencial do zero... vou ter que liderar uma equipe sem entender nada do que a área faz. Não faz sentido. Se eu for, capaz de ser um péssimo coordenador e um mal líder... Mas, também, encarar o mercado nesse momento... eu não sei o que é pior!”.

Se nos colocarmos no lugar do Dario, perceberemos que o atual sofrimento que ele vive é quase inevitável. Afinal, a empresa está lhe oferecendo uma opção que não é uma opção viável. Caberá a ele escolher entre o medo e o medo, entre a angústia e a angústia... Na verdade, não há uma saída boa para ele, no máximo  uma menos ruim.

A lógica corporativa é a causa primeira e única

É importante evidenciar alguns pontos do momento que Dario está vivendo e que são gatilhos para geração de sofrimento psíquico [enquanto escrevo essa coluna, ele ainda não se decidiu]:

  • A falta de reconhecimento da qual estou falando não se trata apenas da promoção ou de um cargo [se assim o fosse, estava tudo certo]. Estou narrando aqui a desvalorização de uma trajetória repleta de esforço, de investimentos de tempo e de dinheiro, de sonhos... e, mais, a desvalorização do saber acumulado [como se despir-se do conhecimento acumulado de anos fosse tão fácil quanto trocar de blusa]. No limite, é como se a empresa estivesse dizendo para ele esquecer tudo o que ele fez até aqui, jogar na lata do lixo tudo o que ele construiu, aprendeu e pronto.

  • O risco que ele corre em aceitar a mudança, mas não conseguir se estabelecer como líder na nova área é algo que o obrigará a esticar a corda – no sentido de ter que ir buscar todo um novo aparato de conhecimento [que se traduz em mais investimento de tempo e de dinheiro, num curto espaço de tempo para não correr o risco de ser demitido em poucos meses por incompetência; porque, afinal, as cobranças por metas não vão cessar enquanto ele se adapta].

  • A interrupção abrupta da linearidade da carreira de Dario, que até então estava sendo bem construída. Por mais que a noção de carreira possa estar em xeque – devido à ameaça futura da quarta revolução industrial que recai sobre inúmeras profissões atuais – essa narrativa a respeito das escolhas profissionais que são feitas é algo que o mercado ainda valoriza [como explicar, numa possível futura entrevista de emprego, essa passagem abrupta de A para Z?].

  • Não menos importante, a possível interrupção da renda – uma das ameaças veladas mais presentes no mundo do trabalho e que é fator primário de sofrimento. Se Dario aceitar a oferta, há o risco de tudo dar errado na nova área e ele perder sua renda. Se ele não aceitar, terá que encarar o mercado na atual situação de desemprego. O mercado de trabalho atualmente assusta não só pelos elevados índices de desocupação, mas pela redução constante na oferta de vagas somada à diminuição do poder aquisitivo desde 2012.

  • Por fim, outra angústia clássica entre os trabalhadores do mercado corporativo é a ausência de mecanismos para relatar esse tipo de situação ou pedir orientações. As áreas de Recursos Humanos são, muitas vezes, descreditadas por não transparecer segurança e sigilo sobre situações delicadas assim. Obviamente, é uma fonte de sofrimento ter que lidar com isso sem orientações específicas.

Essa história que relato e analiso está longe de ser a exceção no ambiente corporativo. Esse tipo de situação, em que o empregado pouco ou nada pode fazer para aplacar seu sofrimento, é o lugar comum: seja num contexto como o de Dario, seja pela constante pressão por resultados a qualquer custo, seja pelas situações de assédio que não encontram meio de serem reportadas (afinal, os canais de ética e afins são percebidos como ineficazes por parte dos colaboradores). Bom, num país em que temos até um paredão ao estilo BBB para demissão de funcionários...

É isso o que eu nomeio por perversidade corporativa: a manutenção de situações que colocam o empregado frente à ameaça constante do desemprego. Um circuito clássico de geração de sofrimento psíquico no trabalho que existe muito antes da triste realidade da pandemia do Covid-19.

Por isso, ao ler esse texto, você pode querer descobrir quem é o Dario. Ou pode ter a sensação de que ele é você. Tanto faz: Dario pode ser qualquer um de nós, exatamente porque esse quadro de sofrimento psíquico no trabalho é a regra – e não a exceção.

[1] Essa expressão, “achatar a curva”, diz sobre uma prática – obviamente não oficial – que é incentivada em muitas empresas: para justificar as não-promoções, os líderes se sentem coagidos a dar notas medianas nas avaliações de desempenho (que, normalmente, vão de 1 a 5). Assim, achatar a curva significa classificar a grande maioria dos liderados com notas abaixo de 3; ou seja, da média para baixo, para que desta forma diminuam as possíveis argumentações e cobranças por promoção. Essa é uma realidade bastante presente nas empresas e que recebe a anuência das áreas de Recursos Humanos e afins. 

* Esta coluna não reflete, necessariamente, a opinião do Site Doutor Jairo