Se você for buscar na internet a definição de uma pessoa narcisista encontrará algo como “alguém que apresenta um padrão de comportamento caracterizado por uma sensação exagerada de importância, necessidade de admiração constante e falta de empatia pelos outros”. Com certeza, você conhece alguém assim. E, claro, essas pessoas estão em todos os lugares e na política não seria diferente, aliás, esta é uma área que atrai muito os narcisistas. Mas a questão é: por que os eleitores votam nelas?
"Eu poderia parar no meio da Quinta Avenida e atirar em alguém, e não perderia quaisquer eleitores, ok"; "No meu caso, gosto de tomar um bom banho e cuidar do meu lindo cabelo" – Donald Trump, presidente dos Estados Unidos.
“Deus deixou o sertão sem água porque sabia que eu seria presidente”; “Vocês não vão me ver de andador, vão me ver sempre bonito” – Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil.
“Foram quatro homens. A quinta eu dei uma fraquejada, e veio uma mulher”; "No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho..." – Jair Bolsonaro, ex-presidente do Brasil.
"Se você não gosta de minhas respostas, então não faça perguntas"; "Eu não sou uma mulher, então eu não tenho dias ruins" – Vladimir Putin, presidente da Rússia.
As frases acima podem ser vistas como exemplos de narcisismo?
Paulo Henrique Cassimiro, professor de ciência política da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) explica que todo grande líder político exerce, de algum modo, um papel narcisista. Para que ele represente seus liderados, precisa se apresentar como alguém com capacidades excepcionais. Alguém capaz de exercer liderança e de fazer grandes coisas. Precisa se autorreferir muitas vezes.
Ele explica que as pessoas escolhem líderes fortes porque precisam sentir que seus ideais serão realizados por um indivíduo que tem capacidades de entrar em conflito com seus inimigos e ganhar o páreo.
"De Mussolini a Bolsonaro e Trump, no campo da direita, a Lenin, Fidel ou Lula, no campo da esquerda, seus apoiadores acreditam que o líder é, ao mesmo tempo, um igual, mas um igual que representa de modo excepcional as características que valorizamos”, acrescenta Cassimiro.
Já o psicólogo, doutor em Psicologia Clínica e professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Paulo Cesar Porto Martins, diz que os eleitores são atraídos por candidatos narcisistas devido a múltiplos fatores psicológicos. Isso porque o narcisista projeta uma imagem de autoconfiança extrema e grandiosa que satisfaz necessidades psicológicas básicas dos eleitores, como a busca por segurança e liderança forte.
“Segundo a teoria do ‘carisma tóxico’, esses indivíduos exploram habilmente as ansiedades coletivas, apresentando-se como salvadores únicos. O fenômeno também se relaciona com a ‘transferência freudiana’ – eleitores projetam no candidato narcisista a figura de autoridade idealizada que desejam ter. Adicionalmente, em momentos de crise ou incerteza social, a aparente certeza do narcisista oferece um senso de estabilidade psicológica, mesmo que ilusório”, diz Martins.
Martins comenta que além da projeção, ocorre também a "identificação projetiva", na qual eleitores com traços narcisistas latentes se identificam com o candidato, vendo nele uma versão amplificada de si mesmos. Há ainda a "projeção de responsabilidade" – ao escolher alguém que se apresenta como onipotente, os eleitores transferem inconscientemente a responsabilidade por soluções complexas para esta figura "superior", aliviando sua própria ansiedade quanto aos problemas sociais.
Cassimiro ainda diz que votar em narcisistas é um fenômeno político cíclico na medida em que, em situações de crise da representação, a população reconhece nesses líderes uma capacidade de quebrar a rotina de um sistema político no qual não se reconhecem mais representadas.
Os eleitores acreditam mesmo no que o narcisista fala ou se deslumbram com alguém que acham ter uma autoestima elevada e, portanto, mais preparo e irá melhorar a vida de todos? Para o psicólogo, trata-se de um processo psicológico complexo que envolve ambos os aspectos, operando em diferentes níveis de consciência. No nível cognitivo, muitos eleitores são genuinamente persuadidos pelo discurso narcisista devido ao fenômeno da "certeza carismática" – a convicção absoluta com que falam gera credibilidade aparente.
No nível emocional, há fascínio pela "autoestima vicária" – pessoas com autoestima fragilizada se sentem fortalecidas ao se associar com alguém aparentemente invencível. Isso ativa o sistema de recompensa cerebral. “É crucial distinguir autoestima saudável de grandiosidade patológica. O narcisista não possui autoestima elevada, mas, sim, uma autoestima frágil compensada por fantasias grandiosas. Paradoxalmente, essa vulnerabilidade mascarada pode atrair eleitores que, inconscientemente, reconhecem e se identificam com essa fragilidade oculta”.
Assim, os eleitores votam por pensarem que aquela pessoa, com tanto carisma, é a mais preparada para governar. “Este é um viés cognitivo sistemático conhecido como ‘efeito halo da confiança’. A correlação aparente entre confiança extrema e competência é uma falácia psicológica bem documentada. Estudos em psicologia social demonstram que indivíduos narcisistas são consistentemente superestimados em suas capacidades devido ao ‘viés de autoconfiança’. Eles falam com tal convicção sobre temas que desconhecem que observadores confundem essa ‘certeza’ com expertise”.
Segundo Martins, o fenômeno se agrava pelo "efeito Dunning-Kruger inverso" – quanto menos competente o narcisista, mais confiante aparenta ser, criando uma ilusão de competência que engana observadores menos atentos. “Neurologicamente, a confiança extrema ativa áreas cerebrais associadas à credibilidade nos observadores, mesmo quando o conteúdo é questionável, explicando por que esse engano é tão eficaz e persistente”.
Estudos mostraram que muitos CEOs de empresas são psicopatas. Pode-se pensar que há também muitos políticos psicopatas? “Sim, pesquisas indicam taxas elevadas de Transtorno de Personalidade Narcisista e traços psicopáticos em posições de liderança, incluindo na política. Estudos sugerem que aproximadamente 4-15% dos líderes corporativos apresentam traços psicopáticos significativos, comparado a 1% na população geral. Na política, a ‘seleção darwiniana tóxica’ favorece indivíduos com baixa empatia, alta manipulação e sede de poder”, explica o psicólogo.
Martins lista características centrais desses transtornos – o ambiente político recompensa comportamentos como:
“É importante distinguir, pois nem todo político é narcisista/psicopata, mas esses transtornos podem oferecer ‘vantagens adaptativas’ no ambiente político competitivo, explicando sua sobrerrepresentação. O risco social é imenso, pois líderes com esses perfis tomam decisões baseadas em benefício próprio, não no bem comum”, completa Martins.
Então, como ficam os candidatos com o perfil oposto ao narcisista? Eles conseguem chamar a atenção dos eleitores ou eles os achariam fracos e incapazes? O psicólogo comenta que indivíduos com "liderança autêntica" – caracterizada por humildade, empatia e autoconhecimento realista - enfrentam desafios sistêmicos no ambiente político atual.
“Paradoxalmente, estudos mostram que líderes humildes são mais eficazes a longo prazo, pois tomam decisões mais ponderadas, constroem equipes mais competentes, mantêm melhor conexão com necessidades reais da população, demonstram maior integridade ética. Contudo, esses líderes enfrentam a ‘armadilha da modéstia’ – em culturas que equivocam arrogância com competência, sua humildade genuína pode ser interpretada como fraqueza”, reconhece Martins.
Para ele, o desafio está em "recompensar a autenticidade" – criar sistemas eleitorais que valorizem substância sobre espetáculo, competência real sobre carisma superficial. Isso requer educação cívica e desenvolvimento de senso crítico dos eleitores.
As pessoas, no entanto, podem se rebelar contra políticos narcisistas, e isso já acontecia mesmo antes de elas terem o direito de votar. “As eleições são uma das formas de se manifestar politicamente. Porém, sempre houve, na história do mundo, formas de manifestação popular como rebeliões, levantes, saques, etc. Que, muitas vezes, eram liderados por figuras carismáticas”, afirma Cassimiro.
Hoje, não só o Brasil, mas a maior parte do planeta passa por uma fase de muita polarização política. O mundo já passou por algo semelhante? “A polarização, por si só, não é um problema. Os EUA foram polarizados entre dois partidos por anos sem que a democracia fosse ameaçada. Aqui, PT e PSDB polarizaram seis eleições. O problema político contemporâneo é a radicalização da direita que quer subverter a democracia, os valores do liberalismo, o pluralismo e o secularismo. É um contexto muito diferente dos anos 1920 e 1930 na Europa, quando havia, sim, um radicalismo de esquerda e de direita. Hoje esse radicalismo, pelo menos o que tem apoio político real, vem só de um lado”, esclarece o cientista político.
Para fechar, Martins ensina que se pode analisar padrões comportamentais públicos que sugerem traços narcisistas. São eles:
“É fundamental distinguir entre ‘narcisismo político estratégico’ (uma performance calculada) e Transtorno de Personalidade Narcisista (uma patologia estrutural). Ambos são problemáticos, mas por razões diferentes. A análise deve focar em comportamentos observáveis e seus impactos sociais, não em especulações diagnósticas. O objetivo é desenvolver consciência crítica dos eleitores para identificar padrões prejudiciais à democracia, independentemente de quem os manifeste”, finaliza o psicólogo.
Cármen Guaresemin
Filha da PUC de SP. Há anos faz matérias sobre saúde, beleza, bem-estar e alimentação. Adora música, cinema e a natureza. Tem o blog Se Meu Pet Falasse, no qual escreve sobre animais, outra grande paixão. @Carmen_Gua