
Redação Publicado em 30/10/2025, às 10h00
As mídias sociais, muitas celebridades e até alguns profissionais de saúde transformaram o glúten em um verdadeiro vilão nos últimos anos.
É importante destacar que algumas pessoas realmente devem excluir essa proteína, presente no trigo, no centeio e na cevada, da alimentação. Indivíduos com doença celíaca, uma condição autoimune que afeta cerca de 1% da população, sofrem inflamação e danos no intestino ao ingerir até mesmo quantidades pequenas de glúten.
Muitas outras pessoas apresentam sintomas ao ingerir alimentos com glúten, porém têm resultados negativos ao fazer testes para doença celíaca ou alergia ao trigo. Nesses casos, a condição é chamada de sensibilidade ao glúten não celíaca. Estima-se que 10% da população global se enquadre nesse diagnóstico.
Mas uma revisão de estudos publicada nesta semana no periódico The Lancet desafia a ideia de que o glúten cause problemas para tanta gente.
Pesquisadores analisaram mais de 58 pesquisas e descobriram que reações específicas ao glúten foram incomuns – representavam entre 16 e 30% dos casos. Segundo eles, muitos participantes que acreditavam ser “sensíveis ao glúten” reagiam de maneira semelhante com um placebo.
Um estudo importante avaliado na revisão investigou o papel dos carboidratos fermentáveis (conhecidos como Fodmaps, uma sigla em inglês) em pessoas que se diziam sensíveis ao glúten, mas não tinham doença celíaca.
Quando essas pessoas seguiram uma dieta pobre em Fodmaps, evitando certos tipos de frutas, vegetais, leguminosas e cereais, seus sintomas melhoravam, mesmo ao reintroduzir o glúten.
Outro estudo mostrou que frutanos, um tipo de Fodmap presente no trigo, cebola, alho e outros alimentos, causaram mais inchaço e desconforto do que o glúten em si.
Isso sugere que a maioria das pessoas que se sente mal após comer glúten é, na verdade, sensível a outros componentes, como os Fodmaps ou outras proteínas do trigo.
Outra explicação possível é que os sintomas resultem de um distúrbio na comunicação entre o intestino e o cérebro, semelhante à síndrome do intestino irritável.
Em outras palavras, algumas pessoas podem ser realmente sensíveis ao glúten, mas as evidências atuais indicam que isso é raro.
Uma descoberta mencionada pela equipe é que a expectativa de ter sintomas influencia fortemente a experiência dos sintomas. Em testes cegos (quando as pessoas consumiam glúten ou placebo sem saber qual era qual) as diferenças praticamente desapareciam.
Algumas pessoas que esperavam se sentir mal com glúten desenvolveram o mesmo desconforto quando receberam placebo.
Esse efeito nocebo (oposto do efeito placebo) mostra que crenças e experiências anteriores influenciam a forma como o cérebro processa os sinais vindos do intestino.
Pesquisas com imagens cerebrais confirmam isso: expectativa e emoção ativam regiões do cérebro ligadas à dor e à percepção de ameaças, aumentando a sensibilidade a sensações intestinais normais.
Vale destacar que essas são respostas fisiológicas reais. As evidências mostram que o foco no intestino, junto com a ansiedade sobre os sintomas ou experiências negativas repetidas com a comida, afeta a comunicação intestino-cérebro (o chamado eixo intestino-cérebro), fazendo com que sensações digestivas normais sejam percebidas como dor ou urgência.
Reconhecer esse componente psicológico não significa que os sintomas sejam imaginários. Quando o cérebro prevê que uma refeição pode causar dano, as vias que ligam o intestino e a percepção das sensações amplificam cada cólica ou desconforto, gerando um sofrimento genuíno.
Isso ajuda a explicar por que muitas pessoas continuam convencidas de que o glúten é o culpado, mesmo quando estudos cegos mostram o contrário.
A hipótese é que uma dieta sem glúten também pode reduzir alimentos ricos em Fodmaps e ultraprocessados, promovendo uma alimentação mais consciente e uma sensação de controle. E tudo isso pode melhorar o bem-estar.
Além disso, muitas pessoas que evitam o glúten passam a comer mais alimentos ricos em nutrientes, como frutas, vegetais, leguminosas e nozes, o que pode favorecer a saúde intestinal.
Para cerca de 1% da população com doença celíaca, evitar o glúten por toda a vida é essencial. Mas para a maioria das pessoas que se sentem melhor sem glúten, essa proteína específica talvez não seja o verdadeiro problema.
É importante mencionar que existe um custo alto em eliminar o glúten sem necessidade. Os alimentos sem glúten são, em média, 139% mais caros do que os comuns e muitas vezes têm menos fibras e nutrientes essenciais.
Diferentemente da doença celíaca ou da alergia ao trigo, a sensibilidade ao glúten não celíaca não possui marcador biológico — não há exame de sangue ou tecido que possa confirmá-la. O diagnóstico depende da exclusão de outras condições e de testes dietéticos estruturados.
Com base em nossa revisão, os autores sugerem que os profissionais de saúde: 1) descartem primeiro doença celíaca e alergia ao trigo; 2) otimizem a qualidade geral da dieta da pessoa; 3) testem uma dieta com baixo teor de Fodmaps, caso os sintomas persistam; 4) e só então considerem um teste, supervisionado por nutricionista, de dieta sem glúten por 4 a 6 semanas, seguido de uma reintrodução gradual do glúten para verificar se ele realmente causa sintomas.
Essa abordagem mantém as restrições direcionadas e temporárias, evitando exclusões desnecessárias e prolongadas.
Se o glúten não explicar os sintomas, combinar orientação alimentar com apoio psicológico pode ser o melhor caminho, sugere a coordenadora do estudo, Jessica Biesiekierski, da Universidade de Melbourne, na Austrália, em artigo sobre o assunto no site The Conversation.
Terapias cognitivo-comportamentais ou baseadas em exposição poderiam reduzir o medo relacionado à comida e ajudar as pessoas a reintroduzirem com segurança alimentos antes evitados.
Dizer que o glúten é um vilão é uma narrativa simplista. Mas a solução para sintomas que certas pessoas têm ao consumir alimentos como pão e massas também é complexa, assim como a conexão entre cérebro e intestino.