Como as comunidades incel atraem e fidelizam seguidores?

Pesquisadores fizeram uma análise profunda sobre a dinâmica peculiar de um desses grupos

Redação Publicado em 11/05/2025, às 10h00

Diferente de outras comunidades, a cultura incel constrói sua identidade de grupo com emoções negativas - iStock

Cada vez mais, pais, educadores e estudiosos têm se preocupado com a influência perigosa exercida pelos chamados grupos “incel” (ou “celibatários involuntários”) na internet. Ainda mais depois que série “Adolescência”, da Netflix, trouxe o assunto para discussão.

Mas como é que essas comunidades conseguem atrair novos seguidores? Seria pela capacidade de despertar uma sensação positiva de pertencimento, algo que tem apelo entre os jovens?

O poder do ressentimento

Um estudo publicado no periódico Acta Sociologica mostra que a estratégia é diferente. Uma análise profunda mostra que comunidades incel online não mantêm sua força por meio das emoções positivas associadas ao vínculo social. E sim através de uma atmosfera emocional compartilhada dominada por desespero, ressentimento e niilismo, ou seja, a sensação de que nada tem valor ou sentido.

O trabalho é de autoria do pesquisador Anton Törnberg, professor associado de sociologia na Universidade de Gotemburgo e coautor do livro “Comunidades Íntimas de Ódio: Por que as Mídias Sociais Alimentam o Extremismo de Extrema Direita” (em tradução livre), em parceria com Parik Kallio, da mesma universidade. 

Energia emocional sombria

Com análise baseada na teoria dos rituais de interação do sociólogo norte-americano Randall Collins, os autores introduzem o conceito de “energia emocional sombria” para explicar como tais comunidades constroem identidade de grupo por meio de trocas repetidas de emoções negativas.

A pesquisa focou em um dos fóruns online estrangeiros mais ativos para autoproclamados incels. Embora o site afirme oferecer um espaço para aqueles que lidam com solidão ou rejeição romântica, suas discussões são frequentemente impregnadas de misoginia, violência e desespero.

Sofrimento em vez de conforto

Os pesquisadores buscaram entender como e por que os usuários participam repetidamente dessas interações, especialmente quando elas parecem causar mais incômodo que uma sensação de conforto. Para isso, eles conduziram uma observação online de cinco semanas, utilizando um método qualitativo conhecido como "análise de discurso psicológico".

Muita gente se sente sozinha ou enfrenta dificuldades em relacionamentos românticos. Mas os incels muitas vezes interpretam essas experiências por meio de uma ideologia rígida e fatalista que culpa as mulheres e a sociedade em geral. Central para essa visão de mundo está a crença de que a aparência física, particularmente a estrutura facial e a altura, determina o sucesso romântico.

Essa perspectiva retrata o mundo dos relacionamentos como uma hierarquia brutal, na qual apenas os homens mais atraentes têm valor, enquanto outros estão condenados à rejeição por toda a vida. Os incels se posicionam no fundo dessa hierarquia e veem seu status percebido como determinado biologicamente e reforçado socialmente.

Autoimagem negativa é ponto forte

Pesquisas anteriores descreveram como essa ideologia constrói um forte senso de identidade de grupo, muitas vezes abraçando misoginia e niilismo.

Mas os pesquisadores por trás deste novo estudo quiseram ir além. Em vez de focar apenas no que os incels acreditam, eles investigaram como as interações diárias no fórum ajudam a sustentar o grupo e sua ideologia tóxica. Especificamente, eles exploraram por que os membros permanecem engajados em uma comunidade que parece aprofundar, em vez de aliviar, o sofrimento pessoal.

“Em minha pesquisa, foquei principalmente em várias formas de movimentos de extrema direita e como diferentes tipos de plataformas de mídia social contribuem para seu desenvolvimento. O movimento incel se destaca de uma maneira fascinante aqui. Diferentemente de muitos outros movimentos sociais, ele se centra em uma autoimagem negativa e é amplamente construído sobre uma identidade coletiva destrutiva”, declarou o autor.

Ideologia ambivalente

Ele destaca que a ideologia incel é profundamente ambivalente e contraditória. Os integrantes desses grupos frequentemente se colocam no fundo da hierarquia social, descrevendo-se como ‘subumanos’, em relação tanto às mulheres quanto aos chamados ‘Chads’ — homens que contam com atratividade física, sucesso sexual e dominância.

Apesar disso, eles tendem a reivindicar uma superioridade moral e intelectual sobre ambos os grupos (Chads e mulheres), que consideram rasos e pouco inteligentes. A comunidade incel também tem uma forte hierarquia interna, onde os membros competem para ver quem é o mais marginalizado – como uma popularidade às avessas.

"Rituais de interação"

A análise revelou que os fóruns incel exibem muitas das características do que Collins chama de “rituais de interação”, marcados pelas seguintes estratégias:

- um foco de atenção compartilhado (por exemplo: um tópico sobre a suposta traição de uma mulher);

- uma identidade de grupo clara marcada por linguagem e normas especiais;

- e uma atmosfera emocional compartilhada.

No entanto, ao contrário dos rituais de interação típicos, que geram energia emocional positiva (como sentimentos de conexão, excitação ou propósito), a energia emocional gerada nesses fóruns é amplamente negativa.

Dinâmica perversa e tóxica

Um exemplo detalhado pelos pesquisadores é o de um integrante que postou sobre uma trabalhadora sexual que, segundo ele, estaria apaixonada por ele. Em vez de receber empatia ou conselhos construtivos, a maioria das respostas foi zombeteira ou cínica. O integrante foi acusado de ingênuo e encorajado a se distanciar emocionalmente ou acabar com a própria vida.

Apesar disso, o autor original permaneceu engajado no tópico, continuando a buscar conselhos e refletir sobre seus sentimentos. Seu estado emocional deteriorou-se ao longo da conversa, culminando em expressões de ideação suicida, segundo os pesquisadores.

Por incrível que pareça, dor emocional e desespero funcionam como símbolos de identidade de grupo. Compartilhar depressão ou amargura torna-se uma forma de provar autenticidade e pertencimento. Até mesmo a ideação suicida é normalizada e, às vezes, encorajada em uma subcategoria dedicada do fórum. Postagens positivas ou esperançosas são frequentemente descartadas ou recebidas com hostilidade, pois contradizem a narrativa compartilhada de miséria inescapável.

Dor emocional é atrativo

Embora algumas teorias sociológicas sugiram que rituais associados ao fracasso levam as pessoas a se desengajarem, este estudo sugere uma dinâmica diferente. Na comunidade incel, expressões repetidas de dor emocional não afastam os membros; elas os atraem mais ainda!

“Uma coisa que se destacou foi que até comunidades que parecem profundamente autodestrutivas, como esses fóruns incel cheios de desesperança, misoginia e conversas sobre suicídio, ainda podem funcionar como grupos sociais fortes”, diz Törnberg, em reportagem no site PsyPost.

“O que faz as pessoas voltarem não é apoio ou positividade, mas uma experiência emocional compartilhada baseada em amargura e desespero. Mostramos como o que chamamos de ‘energia emocional sombria’ atua como uma espécie de cola que une o grupo. É um lembrete poderoso de que ideologias prejudiciais nem sempre se espalham por meio de esperança ou visão — às vezes, elas se espalham por meio de dor e ressentimento compartilhados.”

Linguagem também é estratégia

A equipe também destaca a importância da linguagem e dos símbolos nesse processo. Os membros do fórum usam gírias únicas, memes e linguagem codificada que ajudam a definir os limites do grupo e excluir forasteiros. Essas práticas linguísticas promovem um forte senso de “nós contra eles”, reforçando a crença de que apenas os incels entendem verdadeiramente as realidades da dinâmica de gênero moderna.

Os pesquisadores alertam que suas descobertas têm a ver com um único site e podem não se aplicar a todos os indivíduos que se identificam como incel. Muitos homens que lutam contra a solidão ou rejeição não adotam ideologias misóginas, por exemplo. Por isso é importante que mais pesquisas sejam feitas, inclusive com entrevistas.

Desespero e ódio recompensados

De qualquer forma, as descobertas levantam preocupações sérias sobre as consequências psicológicas e sociais da participação em tais comunidades online. Esses fóruns não apenas reforçam uma visão de mundo destrutiva, mas também criam um ambiente onde desespero e ódio não são apenas expressos — eles são recompensados.

Törnberg diz que pretende estudar mais como a energia emocional gerada nesses ambientes tóxicos online transborda para a violência na vida real.

“Este estudo não é apenas sobre incels — é sobre as forças emocionais que fazem os grupos de ódio online persistirem. Tendemos a pensar na radicalização como um processo intelectual ou ideológico. Mas nossas descobertas sugerem que é também sobre emoção — como as pessoas se sentem, como esses sentimentos são validados e como eles se tornam a base para a identidade de grupo", finaliza. 

Como diz o autor, se quisermos combater culturas online tóxicas, precisamos começar entendendo melhor a raiz emocional dessa lógica peculiar. 

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