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Não monogamia em alta: sexóloga dá dicas para quem quer tentar

Cada acordo de não monogamia é de um jeito, mas honestidade e transparência são centrais - iStock
Cada acordo de não monogamia é de um jeito, mas honestidade e transparência são centrais - iStock

Relacionamento aberto não é para todo mundo. Mas a monogamia tradicional tampouco tem se mostrado viável a longo prazo, e não é só homem que acha, tá? O site especializado em relações extraconjugais Ashley Madison, no Brasil, tem uma proporção de 2,2 mulheres para cada homem cadastrado. E, durante a pandemia, registrou um salto de inscrições no mundo todo, ultrapassando a marca dos 70 milhões.

“Mesmo em culturas em que os papéis de gênero são mais tradicionais, as mulheres são tão infiéis quanto os homens”, garante a sexóloga norte-americana Tammy Nelson. A única diferença é que, enquanto eles se gabam de suas puladas de cerca, elas não têm interesse algum em divulgar essas aventuras. O que há em comum entre homens e mulheres infiéis? A crença de que se relacionar com outras pessoas é essencial para manter o casamento vivo e operante. E a internet móvel facilitou muito a vida de todo mundo, nesse sentido.

Consultora do Ashley Madison, Tammy já escreveu muito sobre traições e está para lançar, nos EUA, um livro justamente direcionado aos casais que se cansaram das mentiras e decepções: A guide to open monogamy – Co-creating your ideal relationship agreement (Um guia para a monogamia aberta – Cocriando seu acordo de relacionamento ideal, sem tradução no Brasil). Com relatos reais de casais que procuraram sua ajuda para acertar ponteiros na vida a (mais de) dois, a especialista dá dicas de como estabelecer regras que funcionem bem para ambos.

Impacto da pandemia

Uma simples pesquisa no Google Trends confirma que a busca por termos como “não monogamia”, “poliamor” e “relacionamento aberto” aumentou bastante nos últimos 15 anos. A convivência intensa no primeiro ano de Covid-19 também serviu de estopim para muita gente repensar seus relacionamentos. E reforçou a ideia de que a vida é curta, por isso temos que ser felizes hoje (este, por sinal, é o apelo da página inicial do Ashley).

O livro de Tammy, portanto, chega em boa hora nos EUA, onde 1 em cada 5 solteiros já se envolveu em um relacionamento não monogâmico consensual em algum momento, e 4 a 9% dos adultos se dizem adeptos a algum tipo de relacionamento aberto, segundo pesquisa recente. Como bem disse um casal citado pela sexóloga nesta entrevista exclusiva: “Passamos quase dois anos presos como pais e agora vamos nos revezar, para dar um ao outro a liberdade de fazer o que quiser, por um número limitado de dias, enquanto o outro segura as pontas em casa”. 

Confira:

Sem comunicação, sem chance

Bem no estilo americano, o guia propõe exercícios para aumentar a empatia e melhorar a comunicação dos casais: sem isso, é melhor nem sonhar com a monogamia aberta. É preciso conversar muito antes, durante e, talvez, até depois de cada noite de sexo selvagem em outra vizinhança (sim, muita gente curte ouvir os detalhes calientes das relações secundárias). Outros preferem combinar que ninguém fala nada sobre o que acontece fora do quarto principal. Cada acordo tem suas características, porque cada um é cada um. O importante é haver honestidade e transparência. (E amor, né, gente, um amor digno de canção dos Doces Bárbaros).

Tammy ainda ensina que é preciso revisitar o “contrato” de monogamia (seja ele qual for) de vez em quando, da mesma forma que é necessário renovar sua carteira de motorista. Dá para garantir que todas as cláusulas  de um acordo de não monogamia serão cumpridas? Não dá. Tem como ter certeza que @ parceir@ vai usar camisinha do começo ao fim e até no sexo oral com outr@? Não tem. Pode rolar ciúme e competição? Ô, se pode. E não dá trabalho discutir a relação o tempo todo? Claro que sim. Mas por acaso algum relacionamento está livre de todos esses riscos? 

Site Doutor Jairo - Você acredita que casais interessados na monogamia aberta devem estudar bastante o assunto, falar com outras pessoas e até com um terapeuta de casais, antes de tomar essa decisão? Sem uma boa comunicação, não dá nem para cogitar o assunto, é isso mesmo?

Tammy Nelson - A comunicação está definitivamente no centro do que faz a monogamia aberta dar certo. Os casais têm de conversar antes de abrir o relacionamento, durante o relacionamento aberto, e, caso eles decidam fechá-lo de novo, tem de haver muita conversa e abertura para falar de sentimentos. Ter desenvoltura para compartilhar emoções, falar sobre medos e preocupações, e ser capaz de celebrar os aspectos positivos, quando eles aparecem, também é importante.

Falar com um terapeuta que seja favorável à monogamia aberta para aprender essas habilidades pode ser um ótimo ponto de partida. Se os casais precisarem do meu livro (Open monogamy) para praticar os exercícios destinados a melhorar a comunicação, isso pode aumentar as chances de que consigam falar um com o outro em vez de se magoar.

Você diz que, em geral, as mulheres são as guardiãs dos relacionamentos abertos. Poderia explicar melhor? Também são elas que iniciam as conversas para aderir à não monogamia?

Na maioria dos casos, uma relação aberta só acontece (nas relações heterossexuais) quando a mulher diz que está pronta para experimentá-la. Elas se tornaram as guardiãs da monogamia.

Chegamos a um momento, em nossa cultura, em que as mulheres não apenas atendem às demandas de seus maridos, mas também têm exigido sua própria satisfação. Elas não se conformam com um sexo ruim ou decepcionante. Elas sabem como ter um orgasmo e querem tê-los. Elas não vão abrir mão do direito a um relacionamento apaixonado e gratificante, e estão mais dispostas a experimentar.

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Parceiro tem fantasias sexuais que eu não quero realizar - o que fazer? Clique para ler as recomendações   (iStock)

Mais de 150 milhões de mulheres leram Cinquenta tons de cinza (em 2017), e quem sabe quantas mais assistiram aos filmes. Há o dobro de brasileiras cadastradas no site Ashley Madison em relação ao número de homens brasileiros. As mulheres sabem o que querem e sabem quando parar.

Na minha prática clínica, não é incomum que o parceiro do sexo masculino seja o primeiro a querer abrir o relacionamento. As mulheres hesitam mais, mas acabam concordando. Só quando a esposa estiver pronta é que o casal dará os primeiros passos, nas pontas dos pés, experimentando um pouco de cada vez. Os homens vão se cansar primeiro, dizendo que tentaram e agora querem parar. Mas, a essa altura, as mulheres já vão estar totalmente arraigadas a seus relacionamentos externos e não vão querer parar.

É sempre interessante observar a cara do marido quando a mulher, que não queria começar, diz a eles: “Ah não, ainda não terminamos...”.

Existem diferentes tipos de relacionamentos não monogâmicos e, apesar de detestarmos regras e promessas, acho que é impossível abrir o casamento sem elas (ao menos para evitar ISTs). Mas como é possível controlar algo como atração sexual ou amor?

Você está certa, é impossível controlar sentimentos uma vez que você tem um parceiro externo. É simplesmente normal sentir algo por alguém com quem você está fazendo sexo, ou com quem você está dividindo seu tempo e criando uma conexão.

Pode haver relacionamentos que duram anos, casamentos paralelos em que os parceiros externos têm famílias com outras pessoas, e ainda assim conseguem manter o parceiro principal num lugar central em suas vidas. A chave, aqui, é a honestidade. Não se pode compartimentalizar ou esconder algo, não pode haver mentiras e traições. Não dá para agir às escondidas numa monogamia aberta.

A maior parte da energia de um relacionamento novo, com um parceiro secundário, acaba se dissipando. Pode durar alguns meses, ou até dois anos, e aí bate a realidade. Como todos os relacionamentos, a novidade se dissipa e a fase de conflito, ou de luta de poder, começa. Se não houver investimento no parceiro externo, nem filho, hipoteca ou promessas, é muito mais fácil encerrar esse relacionamento do que seria terminar um casamento.

Muitas pessoas com parcerias externas empolgantes descreve a experiência como uma energia maravilhosa que elas trazem para casa, para seu cônjuge ou parceiro doméstico. A intensidade varia, é claro. Alguns casais adeptos da monogamia aberta experimentam “compersão”, ou seja, alegria ao ver o outro se sentir alegre, mesmo que com um parceiro secundário.

Outros ficam enciumados. Sentir ciúme é normal. Mesmo para pessoas que vivem monogamias abertas. Algumas pessoas descrevem o ciúme como algo erótico, elas conseguem transformar aquele ciúme em sensações sexuais pelo parceiro. Elas sentem ciúme, mas aquilo meio que os excita, pensar no parceiro com outra pessoa. Outras pessoas não conseguem tolerar o ciúme, porque isso faz com que se sintam inadequados, traz sentimentos de baixa autoestima. Se eles não gerenciam esses sentimentos, isso se torna tóxico para o relacionamento.

Numa monogamia aberta, os parceiros devem ter direito a vetar um relacionamento externo. Se ele ameaçar demais o casamento, o casal precisa ser capaz de dizer “a gente precisa parar com isso” e o outro precisa ser capaz de respeitar esse desejo. Isso nem sempre é possível. O relacionamento externo pode se tornar muito forte, muito poderoso e pode ter que seguir o seu curso. E não há garantia de que isso não irá acabar com o casamento.

Se isso acontecer, não há nada que se possa fazer. Como em qualquer casamento, o risco de a pessoa se apaixonar por outro e o relacionamento acabar está sempre lá. Nesse caso, ambos estão cientes dos sinais de alerta e podem discutir o que fazer.

No Brasil, estamos bem atrás no que se refere a igualdade de gênero. É a mulher, em geral, quem cuida da casa, das refeições, dos filhos, da vida social da família etc. Você não acha que é difícil pensar em monogamia aberta num cenário como esse?

Nós não nascemos com papéis de gênero, a gente os aprende com os nossos pais e a nossa cultura, do mundo no qual nascemos. Neste nosso novo mundo contemporâneo, em todos os países, e nesta geração, estamos aprendendo que, para que a mulher trabalhe, é preciso que haja uma divisão mais igualitária das tarefas. Podemos precisar até de mais de dois adultos para administrar um lar.

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Capa do livro de Tammy Nelson, que será lançado no mês que vem nos EUA: um guia para quem quer abrir o relacionamento

Antigamente, outros membros da família ajudavam com as crianças e as tarefas de casa; agora os mais velhos e os avós têm suas próprias casas e estão envolvidos em seus próprios relacionamentos, muitos deles sexuais, até os 90 anos de idade. Eles podem não querer assumir os papel de babá e abrir mão da própria independência e liberdade, deixando de viver na casa deles para virem morar na nossa.

Nesta economia, pode ser absolutamente necessário que a mulher trabalhe para sustentar o sistema familiar. Isso significa que muita pressão recai sobre as mulheres, com a responsabilidade pelas crianças, pela casa e pelo emprego. Isso significa que muitas mulheres vão querer ter ao menos um lugar onde não precisem estar no comando, onde não tenham que trabalhar tão duro, onde possam encontrar prazer – e isso pode ser a vida sexual. Elas podem terceirizar suas necessidades sexuais – para lugares como o Ashley Madison, com relações virtuais ou presenciais, e assim podem sentir que são mais do que mães, mais do que donas de casa.

Mesmo em culturas em que os papéis de gênero são mais tradicionais, as mulheres são tão infiéis quanto os homens (no Ashley Madison Brasil, como já disse, há 2,2 contas ativas femininas para cada conta ativa masculina).  Mesmo em países onde há punição grave para mulheres que têm casos, elas ainda traem tanto quanto sempre traíram (veja o trabalho da antropóloga Helen Fischer). 

As mulheres tradicionalmente subestimam seus relacionamentos externos, ao passo que os homens sempre se gabam deles. Isso não significa que as mulheres não encontrem prazer fora do casamento, mesmo quando estão exaustas. Elas apenas escondem melhor.

Faz mais sentido dizer que um relacionamento aberto com mais parceiros aliviaria a sobrecarga do trabalho doméstico. Um parceiro poderia cuidar das crianças, enquanto outro poderia lidar com as refeições e a limpeza. Um poderia ser o parceiro sexual, enquanto o outro, apenas uma companhia. Amantes poderiam ir e vir, sem ameaçar a estabilidade da família, se todos os parceiros entendessem seus papéis e trabalhassem para construir uma fundação sólida juntos, em que o objetivo de todo mundo seja ajudar, em vez de tirar a energia do sistema familiar.

A gente sempre ouve que a não monogamia não é para todo mundo. Mas o livro também traz a ideia de que, se não deu certo, é porque o acordo é que estava errado. Poderia explicar melhor?

Para aqueles que desejam experimentar a monogamia aberta, é preciso uma visão compartilhada de um acordo explícito de monogamia. Quanto mais explícita a visão e as ideias sobre a monogamia, menores as chances de alguém trair o acordo. Suposições implícitas que não são compartilhadas podem levar a mal-entendidos e brigas. Um parceiro pode presumir que se masturbar com pornografia é traição, enquanto o outro pode insistir que sua atividade masturbatória é assunto privado e não precisa ser compartilhado. Um parceiro pode pensar que ir a um clube de strip não conta como traição, uma vez que ele não tocou em outra pessoa, enquanto o outro pode sentir fortemente que isso é traição.

A monogamia é um continuum. Tem que ser discutida e negociada. Se um dos parceiros deseja uma forma de não monogamia, deve-se falar sobre isso e ninguém deve presumir que entende o que isso significa para o relacionamento. Pode ser que um dos parceiros queira ir a um clube de sexo ou ter uma única experiência sexual a três, enquanto o outro está pensando que ele quer tentar o swing ou o poliamor, ou que já estava traindo e quer continuar um relacionamento externo atual.

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Será que ter sonho erótico com alguém significa o desejo de trair seu parceiro? Jairo Bouer comenta o assunto

O acordo é que é a questão, não o relacionamento. É sempre importante revisitar o acordo e revisá-lo. À medida que nos desenvolvemos como casal, passamos por muitos estágios de crescimento. O casamento, a chegada dos filhos, o momento em que os filhos crescem, o momento em que saem de casa... todas essas etapas podem apresentar seus próprios desafios ao nosso acordo de monogamia. Às vezes, podemos desejar mais liberdade para explorar coisas novas.

Em outras ocasiões, podemos querer fechar as coisas para criar mais estabilidade. Talvez tenha ocorrido um caso e você queira um tempo para se curar, ou uma doença, uma crise no emprego, ou uma pandemia. A qualquer momento, você pode querer mudar e revisar seu acordo. Assim como é preciso renovar sua carteira de motorista após alguns anos, você também deve rever seu contrato de monogamia.

As pessoas têm falado sobre não monogamia mais do que nunca, e parece que a busca aumentou desde a pandemia. Apesar disso, muita gente continua sendo infiel, usando aplicativos como Ashley Madison. Quais as razões para isso, na sua opinião? Falta de comunicação, ciúme, imaturidade, preguiça? A emoção despertada por um caso secreto? Ou tudo isso junto?

Uma pesquisa on-line feita em 2020, a respeito dos efeitos da coabitação prolongada sobre a sexualidade dos casais, mostrou que houve um aumento no uso de pornografia, na masturbação e uma diminuição no sexo entre casais. O sexo solo foi usado para controlar o estresse e compensar a sensação de solidão. Portanto, embora estivessem o tempo todo juntos, as pressões da convivência doméstica forçada não fizeram os casais se sentirem mais conectados, nem mais “sexy”.

Houve casais que experimentaram um aumento da conexão sexual. Alguns casais que passavam muito tempo no trabalho ou no transporte, e que sentiam falta de estar um com o outro, descobriram que trabalhar em casa lhes dava o tempo de que precisavam para prestar atenção um no outro, fazer as refeições juntos ou caminhadas, e esses pequenos atos fizeram com que desejassem maior intimidade sexual.

É o que chamo de “atração de vizinhança”, a mesma energia que leva as pessoas a terem casos no ambiente de trabalho. Estar perto de alguém que você acha interessante e compartilhar atividades podem aumentar o interesse sexual. Nesse caso, funcionou para atrair o próprio cônjuge. Em outros casos, pode levar à infidelidade.

Mas você está absolutamente certa, o aumento no número de membros da Ashley Madison durante e desde a pandemia foi significativo. O site teve 466.233 inscrições por mês, em 2020, e até ultrapassou a marca de 70 milhões de membros enquanto os infiéis ficavam presos em casa. 

Esse é um número significativo de pessoas que procuram terceirizar suas necessidades, optando pela 'não monogamia não consensual'. Ou, pelo menos, é o que presumimos. Não temos como saber quantos membros do Ashley Madison são transparentes com seus cônjuges ou se há adesão total. Talvez eles estejam em relacionamentos abertos e o Ashley Madison seja um bom lugar para encontrarem potenciais parceiros, uma vez que, em geral, ele é mais conhecido do que outros sites de relacionamento aberto. 

O que vejo clinicamente em meu consultório é que mais pessoas estão procurando por monogamia aberta desde a pandemia. Como disse um casal: “Estamos cansados ​​de ser pais. Queremos dar um ao outro alguma liberdade para ser mais do que apenas escravos domésticos. Passamos quase dois anos presos como pais e agora vamos nos revezar, para dar um ao outro a liberdade de fazer o que quiser, por um número limitado de dias, enquanto o outro segura as pontas em casa”.

Eles enxergam isso como um presente generoso que podem dar ao cônjuge. Eles ainda se amam e de não querem abandonar o casamento de jeito nenhum. Isso fez a vida sexual deles melhorar e mudou quem eles são quando estão em casa. Eles são tão gratos um ao outro que são mais gentis, mais conscientes das necessidades do outro e sentem que cresceram com a experiência.

E o nível profundo de honestidade e transparência os tornou mais “íntimos” do que nunca. Eles sentem um novo nível de integridade em seu casamento. Eles não escondem seus sentimentos, não escondem sua atração pelos outros, e isso não parece estar levando embora algo do que sentem um pelo outro. Isso apenas fez crescer o amor que sentem um pelo outro.

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Tatiana Pronin

Tatiana Pronin

Jornalista e editora do site Doutor Jairo, cobre ciência e saúde há mais de 20 anos, com forte interesse em saúde mental e ciências do comportamento. Vive em NY e é membro da Association of Health Care Journalists. Twitter: @tatianapronin