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Não monogamia: entenda o conceito e as formas de relação

Entre seus parentes mais próximos, o ser humano é um dos poucos monogâmicos - iStock
Entre seus parentes mais próximos, o ser humano é um dos poucos monogâmicos - iStock

Fausto Fagioli Fonseca Publicado em 01/07/2021, às 16h00

Se hoje os relacionamentos monogâmicos são os mais comuns, isso não foi sempre verdade na história da evolução humana. Enquanto a paleontologia entende com base em evidências que o estilo de vida monogâmico pode ter surgido nas sociedades humanas ainda nos primórdios, análises genéticas apontam que a consolidação desse comportamento afetivo se deu entre 10.000 e 20.000 anos atrás.

“Evolutivamente, os nossos parentes mais próximos não são monogâmicos. A monogamia é vista, basicamente, numa espécie que se chama gibão, um primata. Bonobos, chimpanzés, gorilas, que são geneticamente mais próximos, não são monogâmicos e assumem relações poligâmicas de diversas naturezas. E, se olharmos evolutivamente para as espécies que deram origem ao Homo sapiens, as inferências que temos com relação a tamanho de grupo e características físicas também apontam para não monogamia”, explica Jairo Bouer.

Esse período temporal sugerido de consolidação da monogamia, entre 100 e 200 séculos atrás, coincide com o surgimento das primeiras sociedades não sedentárias e com a revolução agrícola. Dados arqueológicos apontam que a domesticação de vários tipos de plantas e animais evoluiu em locais separados em todo o mundo há aproximadamente 12.500 anos.

A monogamia no Homo sapiens, portanto, provavelmente começa a se estabelecer de forma mais clara com a migração de um padrão de nomadismo (caçadores-coletores), para um modelo de convivência em grupos, principalmente com a revolução agrícola. 

“Com isso temos grupos mais complexos e a poligamia, provavelmente, era um fator de desagregação. Então, era preciso garantir que a maioria tivesse parcerias – e, para isso, o modelo monogâmico talvez fosse o mais adequado. Isso depois vem reforçado pela questão das religiões, mas até mesmo antes, quando o ser humano passa a ser mais gregário e começa a ficar mais em comunidades, em grupos mais complexos, a monogamia passa a ser, provavelmente, um fator de estabilização”.

No livro A Origem da Família, da Sociedade Privada e do Estado, Friedrich Engels classifica os tipos de família existentes ao longo da História e mostra como as mudanças na forma de produção da sociedade levaram ao surgimento do conceito atual de núcleo familiar: o que inclui a monogamia e o patriarcado na questão. 

Em sua obra, Engels classifica os tipos de família em:

Família punaluana: envolvia relações afetivas e “casamentos” coletivos de grupos de irmãos e irmãs dentro de grupos e tribos.

Família sindiásmica: aqui as uniões já eram por casais, mas era um tipo de família matriarcal, com infidelidade e/ou o divórcio "tolerados". Aqui, os filhos “pertenciam” às mães.

Família monogâmica: o modelo que conhecemos hoje, de união de um só casal, com coabitação exclusiva dos cônjuges.  

Segundo Engels, à medida que as riquezas aumentavam, davam ao homem uma posição mais importante do que a da mulher na família, o que fez nascer a ideia de usar dessa vantagem para modificar a ordem da herança estabelecida em benefício de seus filhos. “Mas isso não se poderia fazer enquanto permanecesse vigente a filiação segundo o direito materno. Esse direito teria que ser abolido, e o foi”, diz.

Tal revolução, uma das mais importantes da humanidade, passou a gerar grandes mudanças nas formações familiares. “Bastou decidir simplesmente que, no futuro, os descendentes de um membro masculino permaneceriam na gens (descendência comum), mas os descendentes de um membro feminino sairiam dela, passando a gens de seu pai. Assim, foram abolidos a filiação feminina e o direito hereditário materno, sendo substituídos pela filiação masculina e o direito hereditário paterno”. 

Monogamia e a consolidação do patriarcado

Com a revolução agrícola, os homens passaram a deter mais terras, animais e riquezas; um golpe na “sociedade matriarcal”, já que passou a ser importante que essas heranças continuassem na gens (“família”) do homem. Assim nasceu o patriarcado – um sistema social em que homens mantêm o poder, a liderança política, a autoridade moral, o privilégio social e o controle das propriedades. 

É com a consolidação desse sistema patriarcal – e também dos conceitos religiosos de submissão da mulher ao homem – que a monogamia passa a ser a forma mais comum de relacionamento. “A monogamia não aparece na História, portanto, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Ao contrário, surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro", diz Engels.

Confira:

A monogamia pode funcionar, portanto, como uma forma de dominação do homem sobre a mulher. Porém, os modelos de relacionamento em diversas espécies também envolvem dominação: normalmente o macho domina algumas fêmeas, principalmente pela questão física. 

“Esse modelo do patriarcado relacionado à monogamia faz sentido, é um mecanismo de controle, mas talvez já fosse um padrão encontrado em outras espécies e até evolutivamente na nossa espécie. Entre as hienas, por exemplo, as fêmeas são mais fortes e apenas uma fêmea monopoliza vários machos, o que definiria a poliandria, uma forma específica de poligamia. Porém, via de regra, o que vemos nas outras espécies é também um mecanismo de controle do macho – o que talvez reforce essa questão do patriarcado”, completa Jairo.

O que é a não monogamia?

Não monogamia, como o próprio nome já indica, é uma negação, uma proposta de oposição à monogamia como forma de relação afetiva. Dentro do “guarda-chuva" não monogamia existem várias formas distintas de relação e definições possíveis, como: amor livre, poliamor, anarquia relacionamental e relacionamento aberto.

A não monogamia, portanto, se opõe à monogamia com base em novas propostas de relacionamentos que questionam os efeitos nocivos da monogamia para a sociedade. Assim, se na monogamia as duas pessoas envolvidas têm exclusividade afetiva e sexual, qualquer relação em que não haja essa exclusividade afetiva e/ou sexual (consentida) pode ser considerada não monogâmica.

Formas de relacionamentos não monogâmicos

Dentro da não monogamia, diversos arranjos são possíveis, desde que as pessoas envolvidas estejam cientes sobre os acordos, vontades, desejos e envolvimentos “permitidos”. Uma relação não monogâmica não oferece “uma permissão para trair”, até porque a traição é um conceito diretamente relacionado à monogamia, mas sim uma proposta de, com afeto, entender as diferentes formas de relação humana.

Dentro dos arranjos possíveis, há, por exemplo, o poliamor, que pode ser “fechado” ou “aberto”. No fechado, três ou mais pessoas se relacionam amorosamente e sexualmente apenas entre si sem que possam se relacionar com outras pessoas; já no aberto, as pessoas envolvidas na relação podem ter envolvimento com pessoas de fora do relacionamento.

“Para quem quer saber mais e até botar em prática relações não mono, a primeira questão é discutir com o parceiro ou parceira para ver se estão na mesma ‘vibe’. Não adianta uma das pessoas querer e a outra não – e também não adianta impor. Essa construção deve ser feita a quatro mãos para que as coisas fiquem em ordem para todas as partes envolvidas. Esse é o primeiro ponto: conversar para entender as expectativas do outro”, fala Jairo.

Além do poliamor, existem ainda outras formas de acordo, como o relacionamento aberto, em que há exclusividade afetiva entre as pessoas envolvidas, mas há liberdade sexual para manter relações com outras pessoas, e “amor livre”, em que há liberdade sexual e afetiva para que as pessoas envolvidas tenham relação de sexo e/ou de amor com quem quiserem.

Existe, ainda, a anarquia relacional, um modelo de relacionamento em que há relação afetiva entre duas ou mais pessoas, mas sem que adotem qualquer noção de hierarquia, podendo a relação sexual e afetiva acontecer com outras pessoas fora da relação da forma como cada pessoa envolvida preferir.

Outras formas de relações não monogâmicas são possíveis e, para quem quer começar a conhecer melhor a questão, vale pesquisar sobre o tema, conversar com outras pessoas sobre essa vontade e até participar de grupos que discutam as questões envolvidas nesse tipo de relacionamento.

Comunicação é fundamental

Como qualquer relação, uma relação não monogâmica também exige bastante conversa entre as pessoas envolvidas e estabelecimento de acordos e limites – que podem ser revistos e reavaliados de acordo com as conversas.

“Quem quer colocar em prática pode fazer uma experiência e medir o resultado. Talvez numa primeira experiência não haja uma perspectiva de tudo o que pode acontecer, então tem que ter esse tempo para o casal saber se é isso mesmo que quer ou foi só uma tentativa. Rola muita insegurança e, por isso, é importante fortalecer a relação com sua parceria e fazer experiências. Se os dois querem, mas não conseguem, discutir isso numa terapia pode ser interessante”, conclui Jairo.