Doutor Jairo
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Filme sobre anorexia mostra lado pouco conhecido do transtorno

Misto de documentário e ficção, o filme traz experiências da própria cineasta, que teve anorexia - Divulgação
Misto de documentário e ficção, o filme traz experiências da própria cineasta, que teve anorexia - Divulgação

Desde o início da pandemia, especialistas têm chamado atenção para o agravamento de transtornos alimentares como anorexia, bulimia e comer compulsivo. A Covid-19 trouxe razões suficientes para isso: estresse, mudanças na rotina, isolamento, sedentarismo e aumento do uso de redes sociais (que expõe as pessoas a comparações e imagens idealizadas). Para piorar tudo, a doença intensificou a pressão para emagrecer, já que obesidade é fator de risco conhecido para as complicações da doença.

Um estudo publicado no International Journal of Eating Disorders, no ano passado, mostrou que indivíduos com anorexia relataram ter restringido ainda mais sua alimentação nos primeiros meses de isolamento, ao passo que pessoas com bulimia e comer compulsivo passaram a ter mais episódios de descontrole. A saúde mental dos mais jovens, que já estava em risco antes da pandemia, tem sido desproporcionalmente afetada nesta pandemia. Também é na adolescência que a prevalência de transtornos alimentares é mais alta.

Mergulho no inconsciente

Entender o que faz uma menina fingir mastigar um pedaço de bolo para, em seguida, cuspir o doce escondido da família talvez seja mais importante do que nunca. A anorexia nervosa, que faz a pessoa ter um medo irracional de engordar, mesmo com peso abaixo do ideal, não é o transtorno alimentar mais comum, mas é um dos que mais mata. Afeta  cerca de 1% da população feminina mundial, e, apesar de ser menos frequente nos homens, também é grave para eles.

Para compreender e ajudar garotos e garotas que, contrariando nosso instinto mais básico, entendem que não comer é o que fortalece, é preciso mergulhar na mente e no inconsciente desses jovens sem pré-julgamentos. E é exatamente isso que proporciona o filme “Êxtase”, de Moara Passoni. Misto de documentário e ficção, a obra é fruto de pesquisas sobre o tema, mas também das experiências da própria cineasta, que enfrentou o transtorno na adolescência.

A personagem Clara, como ela, vivia numa casa rodeada de gente, no Jardim Ângela, em São Paulo, até que sua mãe foi eleita para um cargo federal e a família se muda para Brasília (Moara é filha da ex-deputada Irma Passoni). A ausência da mãe, envolvida pelos “labirintos” do Congresso Nacional, é sentida pela menina – elemento que parece ter impacto no surgimento do transtorno. E por falar em política, o filme foi produzido por Petra Costa, de “Democracia em Vertigem” (2019), documentário que, por sua vez, contou com Moara como roteirista e produtora associada.

"Êxtase" fez parte da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e nela ganhou o prêmio do júri como Melhor Filme Brasileiro de Diretor Estreante, dado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já foi exibido e elogiado em festivais na Alemanha, Canadá, Coréia do Sul, Dinamarca, Itália, Noruega, Portugal, Suíça e Viena. Mas, infelizmente, ainda não há data para ser visto no Brasil. 

O corpo como inimigo

Numa época em que estranho e doentio é não se preocupar com o peso, o filme apresenta facetas menos conhecidas da anorexia – talvez aquelas que fazem o transtorno ser tão difícil de ser tratado. O próprio título da obra já traz uma pista importante. Mas a fonte de êxtase no transtorno, ao contrário do que pode parecer, não é satisfazer os outros ou a própria vaidade. É dominar o inimigo que vive, ao mesmo tempo, fora e dentro. Afinal, é impossível não olhar os transtornos mentais como reflexos de uma sociedade que também está adoecida. 

“É como se você transformasse seu próprio corpo em outro, num estranho (...), algo que te ameaça, limita, que você quer eliminar”, relata Moara. Ao mesmo tempo, contar calorias e gramas exaustivamente também é um ato de resistência contra as pressões externas. Para Moara, é como dizer: “Vocês querem me controlar? Eu não vou deixar. Eu vou me controlar mais do que vocês podem me controlar ”. É como usar a arma do “inimigo” para se rebelar. “Paradoxalmente, o controle torna-se uma forma de liberação”, conclui a cineasta.

Por esses e outros motivos, superar a anorexia é um processo que leva tempo e envolve idas e vindas. Até porque, como a cineasta explica nesta entrevista, o sistema de hábitos e rituais criados para dominar o corpo dão uma sensação de segurança. Segundo especialistas, o sucesso do tratamento depende do diagnóstico precoce, da participação da família e de uma abordagem multidisciplinar. Mas, como mostra Moara, também depende da sorte de encontrar um terapeuta habilidoso, capaz de  “descristalizar as estruturas rígidas” que ela havia criado para si mesma.

"Êxtase" é o título, e essa sensação, além de estar implícita em diversas cenas do filme, parece importante no contexto do transtorno. O que você diria que gera êxtase, durante as fases mais agudas do transtorno - é sentir seus ossos, sentir-se leve, ou a sensação de controle sobre o próprio corpo ou mesmo sobre a fome?

Êxtase, do grego ekstasis, é formado por ek ("fora, além") e stasis (algo como “fazer ficar”). Ou seja, o estado de estar fora de si, fora do corpo, causado por emoções intensas - que pode ser prazer, mas também medo. Subjetivamente (falo como quem viveu a anorexia, e falo como artista), êxtase me parece a palavra que melhor apresenta o que se busca quando se vive a anorexia. Mas, diferente do êxtase religioso, em que se abre ao outro, ao sobrenatural; o que eu parecia estar buscando era experienciar o êxtase sem o outro. Daí, ou ele nunca se realizaria por completo ou é a morte que você tem como horizonte.

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A cineasta Moara Passoni, diretora do filme  "Extase": "Paradoxalmente, na anorexia, o controle torna-se uma forma de liberação"  (crédito da foto: Janice D'Ávila)

Nesse sentido, a anorexia termina por ser uma experiência de “stasis". Stasis também foi utilizado pelos gregos para descrever divisões e desacordos entre cidadãos da pólis, num conflito estendido no tempo, capaz de marcar a vida política de gerações. Estar na anorexia é como criar um equilíbrio estranho entre forças opostas que te habitam. Corpo e mente tornados inimigos, e forçados a conviver em uma relação hostil. Até, eventualmente, um entrar em guerra com o outro.

Na anorexia, a sensação de não se sentir confortável no próprio corpo chega a tal extremo que se luta para eliminar o corpo. Tentando ser ainda mais clara, é como se você transformasse seu próprio corpo em outro, num estranho. E esse outro não é experienciado como algo que te expande. Mas como algo que te ameaça, limita, que você quer eliminar. Você teme tanto o outro que se convence, intimamente, que não precisa dele. E daí fica sempre à espera de algo ou alguém perfeito chegar, acontecer. Mas esse outro perfeito - ou esse eu perfeito -, por definição, não existe.

Busca-se ter total controle sobre si mesmo, sobre o corpo, sobre o tempo, sobre a vida, e sobre o outro. Essa luta por controlar cada instância da vida pode ser torturante. Mas é também uma sensação de onipotência. Vivemos uma sociedade do controle. A anorexia é como se você falasse para essa sociedade que você é capaz de se controlar ainda mais do que ela o faz. Paradoxalmente, na anorexia, o controle torna-se uma forma de liberação.

Parar de menstruar é um sintoma do transtorno que aparece no filme, junto com vários outros simbolismos ligados à primeira menstruação (o interesse pela sexualidade, o pecado que isso representa e a transformação do corpo de garota em mulher). 

Isso que você fala sobre a menstruação é bem importante. Hoje tenho a sensação de não conseguir distinguir o que veio antes e o que veio depois entre meus 11 e 18 anos - período da minha anorexia. Vivi esses anos como se não sentisse os anos passarem. Uma espécie de transe estático, sem tempo, sem movimento. O que me marca, o que tenho vivo na memória, é o momento em que me dei conta, aos 11 anos, que minha menstruação havia parado de vir e, depois, o dia que voltei a menstruar - já com 18.

Aliás, voltar a menstruar foi potente. Foi como sentir a vida fluindo no meu corpo novamente.

Alguns estudos sobre o transtorno mencionam histórias de religiosas da Idade Média como possíveis casos de anorexia. Existe relação entre o 'não comer' e a expectativa de alcançar um estado transcendental?

Sim, alguns autores falam em "anorexia santa” e comparam essa experiência com a contemporânea "anorexia nervosa". Santa Catarina de Siena, Santa Tereza D’Avila, Joana D’Arc, etc, teriam vivido anorexia e, no caso das duas primeiras, morrido de inanição, numa busca por transcendência, numa experiência de Deus.

Embora muita gente considere anacrônica e inadequada a definição de anorexia santa, acho que ela é boa para pensar. Anorexia santa (Idade Média) e anorexia nervosa (contemporânea) - ambas parecem desafiar o cerne dos lugares de poder dessas sociedades.  Na Idade Média, essas mulheres falavam diretamente com Deus, desafiando o poder da igreja e da teologia — Santa Tereza e Santa Catarina  — as únicas duas doutoras da igreja na época — tiveram mais sorte. Mas Joanna D’Arc, ao proclamar que ouvia a voz de Deus - e não conseguir mentir sobre isso -, foi jogada na fogueira.

Mas, e hoje em dia, o que buscam essas mulheres com seus corpos magros? O que elas estão tentando nos dizer sobre nossa sociedade que temos tanta dificuldade em escutar? Que dor é essa, tão violenta que se faz visível? O que essas mulheres buscam - ou o que elas negam - quando se recusam a comer?

Por um lado há esta dimensão do poder a ser pensada. Mas, por outro lado, ha a dimensão mítica. Talvez, um dos mitos que a anorexia explique seja o da queda do paraíso.

Todos nós buscamos formas de salvação - seja na religião, na política, na arte, no amor. Anorexia não deixa de ser uma forma de buscar salvação.  “O gozo da destruição do corpo como forma de parar o tempo", como me disse uma vez o escritor cubano Edmundo Desnoes. Quando você elimina o corpo, é como se eliminasse a consciência do tempo que passa. Essa eternidade e essa ausência de corpo são uma tentativa de retornar ao paraíso perdido.

No filme, a personagem Clara se muda para Brasília depois que a mãe é eleita para um cargo federal  (Crédito: Divulgação)

Numa cena inicial, o filme sugere que a adrenalina liberada pela mãe grávida fazia a personagem, ainda no útero, querer interromper a entrada de nutrientes pelo cordão umbilical. Você acredita que, de alguma forma, transtornos como a anorexia são formas disfuncionais de evitar a dor ou de lidar com ela?

Acredito que a anorexia foi uma forma que encontrei para lidar com uma dor anterior, que vem do esfacelamento da comunidade, da invasão da comunidade pelo poder “legítimo" do Estado ou pelo poder “ilegítimo” da violência do crime organizado, depois milícias (eu nasci e cresci neste ambiente, até meus 11 anos de idade). Da ausência da mãe que, por conta dessas violências, raramente estava em casa já que, justamente, estava organizando pessoas e grupos para se defenderem. E também, uma forma de resistir a uma sociedade que inventou mil e uma maneiras de controlar nossos corpos sem mesmo nos darmos conta da força desse controle.

Para alguns autores, a anorexia é uma espécie de histeria contemporânea. Eu concordo com essa visão. Como na histeria, anorexia poderia ser entendida como uma forma de transformar a dor em algo extremamente visível. Mas é também uma recusa radical do mundo, um grito de rebeldia, uma tentativa de libertação. É uma recusa dos padrões disponíveis e desejáveis do que é ser mulher, das forças de controle que operam sobre o corpo feminino.

O problema é que na anorexia responde-se ao controle com mais controle. É como se disséssemos: “vocês querem me controlar? Eu não vou deixar. Eu vou me controlar mais do que vocês podem me controlar ”. Ou seja, é como se você usasse, para se rebelar, a própria arma do “inimigo”. E ainda (eu tinha, pelo menos) tem uma certa arrogância de dizer: “e ainda vou mostrar para vocês onde essa ideia de controle é capaz de nos levar”. Costumava falar que anorexia é um espelho trágico do mundo. É estranhíssima essa sensação. Mas por vezes, em algum lugar íntimo do que estava vivendo, tinha a sensação de que aquilo se conectava com “a dor do mundo”, que apenas acentuava algo que todos vivenciamos: ter de habitar um mundo feito de controle, onde cabeça e corpo estão cindidos, onde excessivamente consome-se alimentos que não alimentam, e daí por diante…

Anorexia nesse sentido, é um sintoma. Não acho que eu estava tentando me matar. Acho que estava tentando encontrar liberdade - e um lugar-, num mundo hostil.

Acho que o filme fala dessa tentativa de encontrar uma maneira de viver, e da necessidade do amor, da comunidade, do outro.

O filme aborda a questão dos "pensamentos mágicos" da menina, por exemplo quando a mãe demorava para chegar, ou ao mastigar a hóstia para fazê-la "sangrar". Sabemos que essas sensações irracionais também podem permear a anorexia. Você tinha isso? Sentia que algo ruim aconteceria, ou que ficaria impura, se comesse determinado alimento?

Sim, intensamente. O ponto azul no filme é uma materialização desse jogo mental que eu estabelecia comigo mesma no intuito de certeza num mundo incerto, de  encontrar conforto em uma realidade hostil, sobre a qual eu não tinha nenhum controle. E uma maneira de provar pr’eu mesma, que eu dava conta de me cuidar sozinha, na ausência do outro.

Quando fala das internações, a narradora-personagem diz que sentia como se estivesse sendo castigada. Essa resistência dos pacientes em colaborar com o tratamento, que às vezes chega a ser fatal, é muito comentada pelos especialistas. Em que momento você passou a aceitar o tratamento? Houve um "ponto de virada"?

Viver anorexia é como Marguerite Duras fala que é viver a loucura e a inteligência — quando se está dentro, ela faz total sentido. Quando se está fora, é dificílimo acessá-la.

Não houve um momento específico em que falei “estou curada”. Anorexia tem muitas dimensões. Não foi algo que de repente falei “superei”. Foi um trabalho difícil, extremamente doloroso, de idas e vindas, e de anos. E, também, de ir contra a todo um sistema de hábitos e rituais que eu havia criado pra mim mesma e que me davam sensação de segurança.

Mas houve um momento importante em que o “estado" da anorexia parece ter se quebrado. Foi uma espécie de tomada de decisão interna. Quando me dei conta de que não suportava mais viver naquela condição. Que viver sem o outro era empobrecedor demais. Que precisava sair daquele aprisionamento, armadilha que havia armado pr’eu mesma. Aprender a dar a mão, olhar pela janela.

Mas essa quebra também veio por conta de uma terapeuta. Por sorte — por ter pais compreensivos e com condições de me ajudar emocional e financeiramente — tive a oportunidade de passar por muitos e muitos terapeutas e médicos, até encontrar uma terapeuta que, ao mesmo tempo, me ofereceu compreensão e acolhimento, mas foi muito mais esperta do que eu (risos). Ela nunca me perguntou por que eu não comia, nem dizia que eu precisava comer. Eu só lia, estudava e corria? Pois bem, ela começou a ler livros comigo. Lemos juntas uma série de livros e artigos de jornais. O que me marcou foi Alice No País das Maravilhas e Através do Espelho, os textos de Elias Canetti sobre a invenção do calendário, sobre as leis; e um romance chamado “Ayla, a filha das cavernas”. Com essas leituras ela me ajudou a descristalizar estruturas rígidas que havia criado para mim mesma. Até que um dia, literalmente acordei devorando a geladeira. Depois de anos, parecia ser a primeira vez que eu sentia fome. Depois disso veio uma guerra comigo mesma: eu não queria comer, mas meu corpo não me permitia mais não comer. Quanto mais eu tentava não desejar, mais eu desejava. Era impossível não sentir mais fome. Desse momento em em diante, de certo modo houve uma tomada de decisão interna de sair daquela condição. Daí em diante, foi um lento e doloroso processo de cura, com idas e vindas e muitos desafios.

A sensação, no fim do filme, é a de que "vencer" a anorexia envolve, de certa forma, fazer as pazes com o próprio corpo, com as próprias raízes e com os outros. Poderia explicar como a terapia foi importante no seu processo?

Sim, acho que a saída da anorexia passa por dar a mão ao outro. Passa por compreender que o outro não é um ser que te limita ou te ameaça, mas um ser que te expande, que te oferece infinitas possibilidades. É desafiador, instável, por vezes frustrante, e até mesmo doloroso? Sim. A ideia não é ter o outro para controlá-lo. Mas para afetar e ser afetado por ele. Todo o oposto do que o autoritarismo nos impõe, ou nos convence de querer, ao prometer "segurança". Mesmo doloroso, o outro nos abre para descobertas e transformações riquíssimas.

Quem sofre de transtorno alimentar costuma dizer que "cura" é uma palavra muito forte. Você sente que ainda fica vulnerável em momentos de estresse? Sentiu essa fragilidade ao vivenciar a pandemia ou os acontecimentos políticos recentes?

Minha vulnerabilidade não é mais sentida na forma de distúrbio alimentar - nesse sentido posso dizer que me curei. Mas tem sido muito difícil experimentar nosso mundo sem ser acometida de angústia. A incerteza do que vai acontecer com a gente amanhã, não poder fazer planos e a dificuldade de sonhar com o futuro, o peso do isolamento. E também o desprezo pela vida de que quem hoje ocupa os lugares de poder em nossa sociedade, é como se todo o tempo algo tóxico tivesse sendo jogado no ar. Tudo isso anda bem asfixiante.

Mas, hoje em dia, aprendi a criar espaços para processar e transformar tudo isso, antes de adoecer. Falo de meditação, terapia, dança, amigos, relações, conexões (mesmo virtuais…). Sem dúvida não estou na minha potência máxima. Mas sigo forte e acreditando. Acho que a diferença, mesmo, é que aprendi a pedir ajuda. E assim caminhamos, uns apoiando os outros.

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"Hoje em dia, aprendi a criar espaços para processar e transformar tudo isso, antes de adoecer. Falo de meditação, terapia, dança, amigos, relações, conexões (mesmo virtuais…)"  (Crédito da foto Janice D'Ávila)

Alguns estudos têm alertado para uma possível relação entre o uso excessivo de redes sociais e transtornos emocionais entre jovens (automutilação, transtornos alimentares, depressão, ansiedade etc). Qual sua opinião sobre isso?

Sinto que as redes sociais têm potencial de nos conectar com o mundo. Isso é de uma liberdade e potência imensas. No entanto, também sabemos que essas redes aprenderam que é possível ganhar dinheiro promovendo práticas que são baseadas em produzir a sensação de falta, e a necessidade de querer sempre mais. E sabemos que a economia do amor, do desejo e da identidade são complexas. Sobretudo quando somos adolescentes e estamos batalhando para encontrar uma voz própria. Normalmente passamos por um período em que tentamos caber nas calças dos outros, fazemos de tudo para sermos aceitos e admirados por esses outros, tentamos cumprir expectativas, competimos,  nos comparamos, dependemos da aprovação externa para acreditarmos em nós mesmos, etc. Até que um dia a gente descobre (ou não), que ser singular é muito mais divertido que ficar tentando ganhar um jogo que você não criou as regras, nem mesmo decidiu começar a jogar.

As redes sociais mudaram a forma como nos comunicamos. O mundo virtual ganhou status de realidade. Imagens de corpos, de corpos reais. Me parece impossível isso não influenciar nossas subjetividades e a maneira como lidamos com nossos corpos e o espaço concreto que habitamos. Tão pouco o mundo virtual tem limites. Na anorexia, conhecemos muito bem isso — o corpo é transformado numa ideia a tal ponto, que começamos a acreditar que podemos manipulá-lo como quisermos. E o fazemos a partir da ideia perigosa de perfeição.

Tem um padre muito legal do Jardim Angela, Padre Jaime - e antes dele o Bispo Dom Helder Câmara, - que dizia que as cabeças pensam onde os pés pisam. Eu me pergunto onde é que nossos pés andam pisando? De um lado podemos potencialmente acessar virtualmente qualquer lugar da terra. Mas o fazemos desde um lugar (de certo modo) seguro - nossas casas. Nesse sentido, até que ponto essa ida ao outro, essa jornada, de fato nos leva a nos deslocarmos de nós mesmos, a nos estranharmos, a nos redescobrirmos? Me parecem ser viagens com muito pouco risco, muito pouca instabilidade.

Não acredito em determinismos e sempre há movimentos de fuga, abertura, transformação. Mas acredito que estamos deixando a lógica da maximização do lucro tomar conta dos nossos corpos, penetrar até mesmo nossos amores mais íntimos, e os lugares mais complexos de nossas subjetividades. Hoje mesmo (domingo), estava lendo no The New York Times que a gravidez das celebridades são um baita negócio. E essa lógica é perigosa. Ao invés da vida, viramos números numa conta de banco, em likes de instagram, em estatísticas de economistas malucos que querem tudo, menos colocar a vida no cerne de suas preocupações e responsabilidades. Num certo sentido, tudo na anorexia vira número, cálculo, planejamento. De novo, isso me faz pensar que as coisas estão mais conectadas do que parecem em primeira instância.

“O Dilema das Redes Sociais", um doc da Netflix, traz uma pesquisa que mostra que desde que as redes sociais começaram a ser maciçamente usadas em telefones celulares em 2009, houve um boom na prevalência da ansiedade e depressão entre pré-adolescentes e adolescentes. O número de garotas internadas por se cortarem sobe 62% para adolescentes e 189% para pré-adolescentes. E o padrão se repete no que tange a suicídios: 70% para adolescentes e 151% para pré-adolescentes. De modo geral, é uma geração inteira que passa o tempo livre no celular. E vem se tornando mais insegura, mais ansiosa, toma cada vez menos riscos. E por aí vai.

Não sei se dá para achar isso normal. Além disso, será que são só os pré-adolescentes e adolescentes que estão mais infelizes do que antes?

Poderia nos passar a agenda do filme - há alguma previsão de exibição este ano? E como os brasileiros vão poder vê-lo?

Nossa próxima exibição será nos EUA. Ainda não temos data para estreia do filme no Brasil, mas estamos buscando formas de distribuir o filme. Gostaria muito de desenhar uma campanha de impacto, em que o filme fosse instrumento de diálogo, conexão. E ao criar diálogo e conexão, de algum modo, de cura, para além da anorexia.

“Êxtase”

Ficha técnica

Diretora: Moara Passoni

Produtora: Petra Costa

Empresa Produtora: Busca Vida Filmes

Produção executiva: Paula Pripas, Leda Stopazzoli, Emilia Ramos

Fotografia: Janice D’Avila

Montagem: Fernando Epstein

Som: Cecile Chagnaud

Mixagem: Edson Secco

sica original: Ismael Pinkler

Soundtrack: “I’m waiting here” de David Lynch and Lykke Li

Tatiana Pronin

Tatiana Pronin

Jornalista e editora do site Doutor Jairo, cobre ciência e saúde há mais de 20 anos, com forte interesse em saúde mental e ciências do comportamento. Vive em NY e é membro da Association of Health Care Journalists. Twitter: @tatianapronin