Dossiê aponta os prejuízos e psicóloga conta como tem sido o atendimento de dependentes
Tatiana Pronin Publicado em 05/12/2025, às 10h00
Um dossiê divulgado nesta semana pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) aponta que os danos à saúde associados às apostas e jogos de azar no Brasil podem custar pelo menos R$ 30,6 bilhões por ano.
Considerando também outros prejuízos sociais, como desemprego, perda de moradia e até encarceramento, o custo total estimado chega a R$ 38,8 bilhões por ano, segundo o IEPS, que fez o levantamento em parceria com a Frente Parlamentar da Saúde Mental (FPSM) e a ONG Umane.
O dossiê revela que desse montante ligado à saúde, cerca de R$ 17 bilhões correspondem a mortes adicionais por suicídio, e outros R$ 10,4 bilhões referem-se à perda de qualidade de vida associada à depressão. Há também estimativas de R$ 3 bilhões em custo com tratamento médico de depressão.
Os números são chocantes, não apenas porque refletem um enorme prejuízo financeiro ao país, mas porque têm a ver com o sofrimento de muitas famílias que perderam vidas e recursos por causa desse tipo de aposta.
Reconhecendo a gravidade dos danos, o Ministério da Saúde — junto com o Ministério da Fazenda — lançou nesta semana o Observatório Brasil Saúde e Apostas Eletrônicas. A iniciativa prevê, entre outras medidas, a criação de uma plataforma de autoexclusão: a partir de 10 de dezembro, será possível solicitar o bloqueio de acesso a todos os sites de apostas autorizados e tornar o CPF indisponível para novos cadastros ou publicidade.
O Observatório também servirá como canal permanente de troca de dados entre Saúde e Fazenda, com o objetivo de identificar padrões de risco, orientar os serviços de saúde e facilitar o acolhimento de quem já desenvolveu dependência.
Para ampliar o cuidado, o sistema público (SUS) oferecerá, a partir de fevereiro de 2026, teleatendimentos especializados em saúde mental focados em apostas, com previsão inicial de 450 atendimentos por mês, podendo aumentar conforme demanda.
Para algumas pessoas, o que começa como diversão ou oportunidade pode evoluir para um comportamento que compromete a saúde, as finanças e os relacionamentos.
A psicóloga Mirella Mariani, do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), explica que “arriscar-se nos jogos de azar pode causar dependência para certas pessoas”. Isso ocorre especialmente quando há impulsividade, histórico familiar, fragilidades emocionais ou uso de outras substâncias.
De acordo com a psicóloga, muitos tentam esconder o problema — por vergonha, negação ou medo — o que dificulta o diagnóstico. Critérios clínicos vigentes ajudam nessa identificação. Segundo o manual psiquiátrico DSM‑5‑TR, por exemplo, uma pessoa que apresentar quatro ou mais dos critérios abaixo em 12 meses pode ser considerada portadora de Transtorno do Jogo (TJ):
O ambulatório do IPq (HC) é um dos raros dedicados exclusivamente a dependentes de apostas. A fila de espera só aumenta: em 2024 havia 203 pessoas aguardando atendimento; nos primeiros seis meses de 2025, esse número subiu para 233.
Apesar dos prejuízos bilionários estimados para a saúde pública, o repasse para o Ministério da Saúde é simbólico: apenas 1% da arrecadação sobre a receita bruta das casas de apostas, como ressalta o dossiê do IEPS.
Esse valor mal cobre os custos gerados pelos danos sociais. E, pior, "nem esse valor tem destinação garantida para ações específicas na RAPS (Rede de Atenção Psicossocial)", conforme relata a diretora de Relações Institucionais do IEPS, Rebeca Freitas.
Rebeca defende que o Brasil precisa abandonar o atual modelo comercial e adotar uma abordagem com foco sanitário — ou seja, tratar as bets como um produto de risco, com regulamentação rigorosa, fiscalização e responsabilidade social, não como um consumo banal. Essa é a abordagem recomendada por especialistas reunidos pelo respeitado periódico médico The Lancet, em 2024, para tratar do tema:
É necessário agir sobre os determinantes estruturais dos danos, com ênfase na prevenção, na redução de riscos e em estratégias de intervenção precoce — e não apenas em campanhas educativas ou na ideia de “jogo responsável”.
Em outros países, o modelo é bem mais ambicioso: no Reino Unido, por exemplo, cerca de 50% da arrecadação de apostas é direcionada à Saúde, argumentam os especialistas no dossiê. Mesmo com esse repasse elevado, Rebeca comenta que, segundo as autoridades britânicas, o sistema ainda não consegue lidar de forma satisfatória com o problema, o que mostra o tamanho do desafio.
"Especialistas locais vêm alertando que a situação é inaceitável, que a regulamentação atual não protege as pessoas dos produtos e práticas prejudiciais do setor de apostas e jogos de azar, cobrando uma revisão do Gambling Act de 2005 pelo governo", afirma a especialista.
De qualquer forma, ela acredita que o modelo britânico é um bom modelo, pois combina fiscalização centralizada, repasse direto e substancial ao orçamento da saúde, sistema de autoexclusão e bloqueio de menores de idade, monitoramento comportamental e investimento para o tratamento de ludopatia, embora ainda seja brando na regulação de publicidade e prevenção de danos.
Considerando o cenário brasileiro — com oferta crescente, marketing agressivo e vulnerabilidade de significativa parcela da população —, fica claro que o repasse atual é insuficiente para responder ao problema de forma adequada.
Assim, se você consome ou já consumiu apostas online, tome cuidado. A promessa de ganhos fáceis e emoção instantânea pode esconder riscos reais. A dependência do jogo não respeita idade, gênero ou classe social. Quem tem perfil impulsivo, dificuldade para lidar com frustrações ou histórico de vulnerabilidades emocionais está mais exposto, mas pessoas com outros perfis também podem ter prejuízos.
Para quem já se identifica com os critérios para diagnóstico de dependência, a mensagem é: não tenha vergonha de buscar a ajuda de um profissional de saúde mental. Quanto mais cedo o problema for abordado, mais fácil será controlar a situação e evitar perdas significativas.
Leia, abaixo, a entrevista completa com a psicóloga Mirella Mariani, do Programa de Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo).
1 - Quais os sinais e sintomas de dependência de jogos/apostas?
Para alguns jogar realizando apostas é um desafio que envolve risco, mas arriscar-se nos jogos de azar pode causar dependência para certas pessoas. Embora qualquer adulto ou adolescente possa ter problemas com apostas, alguns padrões nas características psicológicas e demográficas de indivíduos mais susceptíveis são observados. A tarefa de identificar um portador de TJ [Transtorno do Jogo] não é fácil, pois muitas vezes o indivíduo procura acobertar e disfarçar as consequências dessa dependência. Avanços em neuroimagem e neuroquímica oferecem insights sobre a neurobiologia do TJ. Os critérios diagnósticos evoluíram, embora a identificação frequentemente permaneça desafiadora devido à vergonha, uma grande dificuldade de reconhecer a gravidade do envolvimento com o TJ, ao estigma, à ambivalência em relação ao tratamento e à triagem limitada.
Vale a pena ressaltar que meta-análise cobrindo 14 países e realizada em bases de dados acadêmicas, internet e sites governamentais, com 23 estudos sobre a prevalência de jogo de azar em adultos, identificou e distinguiu perfis para: jogo moderado (pessoa que joga esporadicamente sem comprometer tempo, comportamento ou finanças), jogo problemático (pessoa que começa a apresentar maior frequência de gastos, tempo e perda de compromissos e relacionamentos) e transtorno do jogo (pessoa que apresenta franco comprometimento de questões financeiras, sociais e de saúde decorrentes das apostas).
Diante deste cenário, avaliar aspectos relacionados às caraterísticas de perfil de jogo, motivação para a mudança, regulação emocional, de funções executivas e impulsividade, assim como histórico familiar e dados de comorbidades ajuda na sintomatologia do apostador.
Além disso, existem critérios diagnósticos do DSM-5TR manual psiquiátrico para transtorno do jogo, que indicam os sintomas para identificar que alguém apresenta o problema (como citado na reportagem, acima).
2 - O ambulatório do IPQ é o único do gênero do país? Existem outros? Onde buscar ajuda?
Existem ambulatórios especializados no atendimento para dependências na RAPS [Rede de Atenção Psicossocial, do SUS], ou de outras Universidades Estaduais ou Federais, principalmente se formando agora, que é o momento de grande expansão do mercado de apostas com muitas plataformas disponíveis.
O Ambulatório do Jogo fará 30 anos no atendimento desta população em 2026, realizando atendimentos, formando profissionais, realizando pesquisas e difundindo conhecimento em parcerias importantes com órgãos públicos, particulares, instituições internacionais e toda a rede de atenção ao problema. Essa expertise sempre foi um desafio, porém criou um padrão de qualidade e técnico que fornece excelência no atendimento. Pesquisadores do grupo permanecem propondo novas técnicas e motivações para estimular a maior abrangência no cuidado da população adoecida.
Os CAPS e a RAPS têm núcleos de atendimento que estão sendo preparados em treinamentos, inclusive por parte da equipe para aumentar a qualificação de seus profissionais para os atendimentos na Saúde Pública deste perfil de pacientes apostadores.
3 - Existe fila de espera para atendimento no ambulatório do IPQ? Como funciona?
O Ambulatório do Jogo sempre lidou com fila de espera, por ser um dos únicos grupos de atendimento especializado, para o atendimento exclusivo de portadores de Transtorno do Jogo. No ano de 2024 tínhamos 203 pacientes na fila de espera inscritos e triamos cerca de 50 pacientes, além de deixar o processo de triagem fechado, para não aumentar ainda mais a fila. Ao mesmo tempo, foi implantado um processo de Acolhimento e Psicoeducacional, que, ao fornecer informação de qualidade e com dicas de conhecimento sobre jogos de azar, comunicação assertiva, finanças etc, foi responsável por parte do encaminhamento natural da desistência para o tratamento e uma vida saudável sem apostas. No ano de 2025, a lista de espera passou a ter 233 registros e realizamos a triagem de cerca de 70 pacientes em 2025 (janeiro a junho). Lembramos que os pacientes são chamados para este processo até quatro vezes e cerca de 25% dos registros realizados acabam sendo convertidos em desistências. Além disso, o processo de inscrição está aberto para novos pacientes em 2025.
Se compararmos os nossos números com os do SUS, que atende todo o Brasil, temos os seguintes dados segundo o Ministério da Saúde: 3.490 casos em 2024 e 1.951 casos em 2025 (janeiro a junho), lembrando que os números do PRO-AMJO também são do SUS, havendo uma sobreposição.
4 - Como profissionais que atendem pacientes com esse tipo de quadro, é possível perceber um aumento de procura nos últimos anos, em função das "bets"?
Certamente o perfil de pacientes muda de acordo com a disponibilidade do Jogo de Azar ou tipo de aposta. Se considerarmos que apostas podem ser: legalizadas ou não, mais disponíveis ou de difícil acesso, prometem retorno imediato ou o seu resultado sairá depois de uma semana, resultado da força do marketing a seu favor ou contra, conseguimos imaginar que o público que as acessa não é o mesmo nunca.
Na época em que os Bingos funcionavam legalmente, a procura por tratamento era de pessoas na faixa etária entre 40 e 45 anos. Atualmente, com o bombardeio de mensagens em todos os meios de comunicação ou redes sociais sobre Apostas Esportivas e o acesso facilitado aos seus mecanismos de jogo, qualquer pessoa pode experimentar e, consequentemente, muitas pessoas podem ficar bem, mas aquelas que têm propensão a desenvolver problemas, poderão apresentá-los. Quero dizer com isso que, desde 2018, com a chegada das Apostas Esportivas ao Brasil, começamos a receber pacientes como problemas, anos depois não temos profissionais suficientes para atender à nossa fila de espera.
A demanda é altíssima e nós, como centro especializado, precisaríamos treinar ao menos algumas dezenas de colegas apenas para trabalhar na nossa equipe. E estamos nos organizando para fazê-lo em breve, com o nosso curso de formação. Ou seja, uma demanda para o tratamento para dependentes em transtorno do jogo (bets) que é altíssima, cresceu de forma vertiginosa e segue o mesmo ritmo das propagandas que pipocam em camisas de times, programas de domingo e gamificações em QR Codes. O Brasil passou a ser o campeão mundial em número de apostas saindo da 25ª posição para a 1ª, e isso reflete no número de pessoas com problemas.
Publicidade direcionada, em rede social, TV e QR-Codes, pode induzir as apostas. A redução da demanda e a restrição da publicidade têm sido consideradas estratégias promissoras, e informar órgãos reguladores, como o Ministério Público, por exemplo, com informações sobre como e onde está acontecendo o jogo de apostas, ou a publicidade de forma irregular, é fundamental. É necessário estar atento, pois não basta fazer campanhas sociais e intervenções educacionais com exclusivo foco para a mudança de conhecimento e sobre concepções errôneas sobre apostas, isso não é eficaz. É necessário seguir a legislação já existente, sobre jogo responsável, o Estatuto da Criança e do Adolescente, os materiais de regulação para publicidade do setor do CONAR, e intervenções mais específicas, com foco em habilidades, relações e atitudes, pois todas elas apresentam melhores resultados. A atuação deve visar a diminuição do risco, em ações diretas, sugerindo à pessoa com problemas com apostas, por exemplo, que diminua o tempo nas apostas, que restrinja o acesso ao dinheiro ou evitando o uso de substâncias, como fumo e álcool, sendo estas consideradas as estratégias mais eficazes.
Por outro lado, o Ministério da Economia lançou a portaria de autoexclusão no início do mês de novembro e já funciona. Lançada oficialmente na data de 3/12/25, com a assinatura de parceria com o Ministério da Saúde para o compartilhamento de dados, visando prevenção e promoção de saúde. Iniciativas de pesquisa, treinamento e qualificação de equipes da RAPS também fazem parte do projeto e visam Teleatendimento, chats, autotestes etc.
5 - Na sua opinião, seria importante que mais recursos provenientes da arrecadação com as bets fossem destinados ao tratamento de pessoas prejudicadas por esse tipo de dependência?
O Ministério da Saúde recebe 1%, que é uma previsão legal dos 12% do valor arrecadado. Na medida provisória que foi proposta e solicitou aumento para 18% de taxação, teria estes 6% direcionados especificamente para a Saúde. Porém, a medida não passou.
Mecanismos de difusão de pesquisas, a participação de instituições diversas, o compartilhamento de dados reais e a responsabilização das próprias plataformas para o uso de iniciativas de Jogo Responsável já auxiliam muito. E certamente todo recurso direcionado para a Saúde e com o uso apropriado é muito bem-vindo.
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