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LGBTQIA+: carta aos meus colegas médicos

Além de um desabafo pessoal, esta carta é para que possamos voltar nosso olhar aos pacientes LGBTQIA+ - iStock
Além de um desabafo pessoal, esta carta é para que possamos voltar nosso olhar aos pacientes LGBTQIA+ - iStock

Marcelo Magalhães* Publicado em 10/08/2022, às 10h00

Querido colega médico, não queria entregar minha idade assim, mas terminei minha faculdade já faz 13 anos e a residência de Urologia há 8 anos. Embora esteja me atualizando com frequência, confesso que havia tempo eu não voltava ao meio acadêmico, onde todos nós somos formados. Há pouco tempo assisti a uma aula de residência médica cujo assunto era DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis). Já me entristeceu ver o quanto ainda estamos atrasados em nosso ensino, pois o profissional mais habituado com o assunto já abandonou o termo “DST” e usa o termo “IST” ou Infecções Sexualmente Transmissíveis.

Também torci o nariz a primeira vez em que fui chamado a atenção, afinal de contas, por que mudar um termo consagrado há anos e que está em nossos livros de faculdade? Pare e pense um pouco. Já se imaginou na posição de uma pessoa leiga que acabou de receber o diagnóstico de sífilis, por exemplo? Me diz, não faz todo sentido retirarmos o estigma e julgamento moral que vem ao pensar numa doença vinda do sexo, enquanto, na verdade, trata-se apenas de algum agente etiológico causando uma infecção que tem tratamento?

Após o primeiro slide…

Seguiram-se diversos outros slides bastante técnicos, nomes de infecções, vírus e bactérias, fotos de lesões, características clínicas e tratamentos. Informações relevantes, muita teoria, tudo retirado de um livro sobre o assunto, mas pouca prática. Quando aluno, era exatamente aquilo que eu queria saber. Se pudesse, diria a mim mesmo há 8 anos que, no fim das contas, o importante é escutar com mais atenção, acolher em vez de julgar, entender realidades diferentes, sair da bolha em que vivemos.

As perguntas reais, na vida prática de consultório, são outras e elas não me foram ensinadas nessa época: “Dr, não consigo me adaptar à camisinha, o que devo fazer?”; “Tenho relações apenas com meu namorado, como esta infecção apareceu?”; “O que vou fazer agora? Estou me sentindo sujo. Fiquei sem chão”. Como é receber as primeiras orientações ao descobrir que vivo com HIV? Quanta aflição e incertezas não passam pela cabeça? Tinha aprendido a pedir mais exames e a prescrever remédios. Somente. E parece que ainda hoje é assim.

Esses dias assisti a um desabafo…

Outro dia estava zapeando as redes sociais quando me deparei com o vídeo de uma travesti que dizia algo assim: “Estou há quase 2 anos negligenciando minha saúde, pois tenho extremo pavor em pisar num consultório de urologista. Já pensou que você não precisa temer em realizar um exame mais complexo em que o profissional necessita acessar seus genitais e recebe uma agressão apenas por seu genital não condizer com o que ele estava imaginando?” Esta é realmente uma realidade e trabalhando em consultório LGBTQIA+ escuto relatos assim quase todos os dias.

A verdade é que não aprendemos nada disso em nossa formação. E continuamos sem aprender. A aula a que assisti não falava nada sobre PREP ou prevenção combinada. É espantoso que após o assunto PREP ter sido levantado por um dos colegas, alguns outros nem sabiam do que se tratava. Mais estarrecedor ainda é saber que o preconceito começa ali na sala de aula, ao escutar que a PREP é usada pela população LGBTQIA+ para ficar livre de preservativo e era a culpada por cada vez mais vermos outras ISTs graves. Consegue também imaginar como foi passar a faculdade, residências em Cirurgia e Urologia, ser LGBT e ouvir comentários homofóbicos tantas vezes?

Por outras lições igualmente importantes…

Além de ser também um desabafo pessoal, esta carta é para que possamos voltar nosso olhar a estes pacientes. Sabia que existe a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais? Ela vigora desde 2011, está na Portaria n° 2.836 do Ministério da Saúde e tem o objetivo de promover a saúde integral LGBTQIA+, lutar contra o preconceito e reduzir desigualdades.

Parte destas ações passam pela capacitação de profissionais sensíveis a esta população. Tal capacitação deve incluir, além da formação tradicional, as particularidades de atendimento a essa população, como noções a respeito de hormonização ou cuidados com a genitália redesignada, por exemplo. Importante lembrar que saúde não é apenas o bem-estar físico, mas também mental. Isto deve ser especialmente levado em conta ao falarmos sobre pessoas LGBTQIA+, que apresentam taxas mais altas de depressão e ansiedade e são, por si só, fator de risco para o suicídio.

Já parou para pensar que a homofobia, discriminação e demais violências são agentes propulsores do adoecimento dessa população? O importante, enfim, é enxergar o paciente LGBTQIA+ inserido numa realidade completamente diferente da que você conhece, sem julgamentos morais, sem viés ideológico ou religioso. Apenas lembre-se também de ser humano. Quem sabe assim nossos pacientes deixem de ter medo de chegar em nossos consultórios.

*Marcelo Magalhães é médico urologista