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Mulheres trans no esporte: no limite entre ciência e exclusão

Quais são - se é que existem - os limites entre inclusão e competição justa no mundo dos esportes? - iStock
Quais são - se é que existem - os limites entre inclusão e competição justa no mundo dos esportes? - iStock

Henrique Cardoso Cecotti* Publicado em 05/07/2022, às 15h30

A Federação Internacional de Natação (Fina) anunciou uma nova política que restringe a participação de mulheres trans em modalidades aquáticas. A regra, que foi o maior banimento de pessoas trans da história do esporte, entrou em vigor em junho desse ano e barrou a participação em eventos internacionais de mulheres trans que passaram pela puberdade masculina ou completaram a sua transição após os 12 anos de idade.

A Fina mudou a sua orientação após os votos de 71% das 152 nações federadas em Budapeste, seguindo o painel científico da entidade que relatou que mulheres trans manteriam uma vantagem competitiva significativa sobre mulheres cis. A solução proposta foi a criação de uma nova categoria “aberta” em que pessoas trans poderiam competir.

A decisão trouxe à tona a discussão sobre quais são - se é que existem - os limites entre inclusão e competição justa no mundo dos esportes.

O que diz a ciência?

Homens e mulheres têm desempenhos físicos em força e agilidade bastante diferentes, em grande parte devido à testosterona. Na puberdade masculina, a testosterona aumenta a massa muscular, densidade óssea, altura e tamanho dos membros, além de produzir mudanças no coração, pulmões e no sangue, fatores que contribuem significativamente para performance esportiva. Estima-se que atletas masculinos tenham um desempenho de 30 a 100% maior que as modalidades femininas.

Teoricamente, mulheres trans que passaram pela puberdade masculina manteriam parte dos benefícios da testosterona. Alguns deles, como estatura e tamanho de mãos e pés, não se revertem após a transição hormonal ou cirúrgica. A hipótese de que elas teriam vantagens se choca, no entanto, com níveis baixos de testosterona altos de estrogênio, classicamente associados a menor desempenho esportivo nas mulheres cis.

Em busca de uma resposta definitiva se haveria alguma vantagem competitiva, diversos estudos mediram massa muscular e força em mulheres trans até três anos após o início da hormonização. Eles mostraram uma redução pequena da capacidade física (entre 10-15% em relação à média) que não reverteria completamente o benefício em relação ao sexo biológico masculino.

A grande crítica à maior parte desses trabalhos é que eles mediram o desempenho físico em pessoas comuns, com níveis de treinamento baixo a moderado. E é complicado extrapolar dados de pessoas comuns para estimar o desempenho de atletas profissionais. Vários deles usaram ainda medidas de exercícios isolados (como leg press ou supino) enquanto esportes como natação ou basquete são muito mais complexos e dependem de outras habilidades.

Levando em conta esses dados, o Comitê Olímpico Internacional (COI) definiu em novembro de 2021 que “não se deve assumir que uma atleta trans automaticamente tenha uma vantagem injusta nos esportes femininos” e convidou cada esporte a definir individualmente as suas diretrizes.

Qual o impacto da decisão?

A nova política da Fina exige que as atletas transitem antes do início da puberdade ou antes dos 12 anos. Sozinha, essa decisão exclui praticamente todas as atletas trans do esporte. A dificuldade de acesso dos jovens trans ao cuidado de afirmação de gênero é um desafio em todo o mundo e atualmente está em ameaça em diversos estados americanos. Mesmo no Brasil, a transição é permitida apenas a partir dos 16 anos e só é oferecida no SUS a partir dos 18 anos, o que já excluiria o país de eventos aquáticos profissionais.

Os critérios da Fina também não protegem as mulheres cis que agora podem ter de passar por testes para decidir quem é ou não considerada mulher e permitem que mulheres sejam aleatoriamente alvos de exames e testes invasivos, uma vez que mulheres cis e trans podem ser absolutamente indistinguíveis.

Devemos criar uma terceira modalidade?

A Fina propõe ainda a criação de uma nova categoria “aberta”, para que pessoas trans possam competir, mantendo assim a “equidade” nas modalidades femininas. Mas ainda um dia essa categoria se mostre justa, vai ser muito difícil que seja criada.

Do ponto de vista numérico, pessoas trans representam cerca de 1% da população. É praticamente impossível criar competições ou manter categorias com esse número. Isso sem contar o fato de que em alguns países ser trans é ilegal, o que tornaria o acesso ao esporte ainda mais injusto.

Na prática, a desinformação e o medo são usados como argumentos para defender competições justas e seguras. Para muito além dos dados científicos, a realidade é que mulheres trans não dominam categorias ou competições. Nenhuma nadadora trans já competiu ou compete em nível olímpico. Desde que a política do COI para atletas trans foi instituída em 2003, mais de 63.000 atletas chegaram ao nível olímpico. Desses, apenas 2 mulheres trans e nenhuma ganhou uma medalha.

Essa política coloca ainda em cheque o quanto acreditamos na capacidade das atletas femininas ao não reconhecer que a diversidade de corpos que já existe entre mulheres cis, que diferem em altura, peso, força, velocidade e agilidade, e até mesmo em níveis de testosterona. Aqui no Brasil, o caso de Tiffany Abreu (mulher trans) do vôlei feminino foi muito emblemático. Apesar de muita discussão quando mudou para o vôlei feminino, seu desempenho por vezes foi inferior ao de outras jogadoras cis de destaque dos últimos anos.

A resposta está além da ciência?

A ciência a respeito de pessoas trans no esporte está apenas no começo e respostas definitivas certamente levarão mais de 20 anos para surgir. O que os órgãos regulatórios dos esportes devem saber é que, qualquer política que seja criada agora estará sujeita a mudanças nos próximos anos. O universo esportivo nunca foi aberto a diversidade e o debate atual traz luz ao fato de que pessoas trans estão cada vez mais presentes em todos os espaços.

É claro que quando falamos de esportes profissionais, em que os competidores dedicam carreiras inteiras atrás de resultados, diferenças de segundos podem ser decisivas e qualquer vantagem pode tornar a competição injusta.

A chave para essa discussão pode não estar na medicina do esporte, e sim na sociologia e direitos humanos. Para atletas trans, ser quem são é indissociável do esporte que pratiquem. A pessoa não pode escolher não ser trans para competir, e não é justo que não possa competir simplesmente por ser quem é.

Quando falamos em esportes profissionais, pode ser difícil ter o máximo de inclusão, segurança e igualdade de condições ao mesmo tempo. É possível que tenhamos que escolher algum ponto entre eles. Agora, se isso será de fato necessário, em todos os esportes ou apenas alguns, só mesmo o tempo responderá.

*Henrique Cardoso Cecotti é endocrinologista