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Para fundador da Anvisa, era preciso fechar tudo até termos mais vacina

Gonzalo Vecina Neto em live: "A economia tem que se f.... nessa hora, com o devido respeito” - Arte/Site Doutor Jairo
Gonzalo Vecina Neto em live: "A economia tem que se f.... nessa hora, com o devido respeito” - Arte/Site Doutor Jairo

Redação Publicado em 02/04/2021, às 10h00

Médico sanitarista, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo) e um dos fundadores da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Gonzalo Vecina Neto diz que nunca pensou que viveria uma situação com a atual, apesar de ter estudado com profundidade grandes epidemias como a gripe espanhola.

“A gripe espanhola parece que veio e foi. Essa parece que veio e não vai”, comparou o médico em uma live com Jairo Bouer nesta quinta-feira (1º), um dia depois de o país registrar quase 3.900 mortes por Covid-19 em apenas 24 horas (segundo o Consórcio de veículos de imprensa, com dados das secretarias estaduais de saúde). O convidado comentou ter montado um bunker em casa, onde construiu seu escritório. “Minha sensação é que daqui só sairei barata”, ironiza.

Contundente como sempre, Vecina fez duras críticas à maneira como a crise tem sido conduzida no país, a começar pelo presidente da República. “Essa questão do exemplo é muito importante, a gente tende a dar pouca importância para isso, mas é muito importante. O papel do líder em qualquer organização da sociedade humana é fundamental”, cutucou. “Se o teu chefe fala pra você que máscara é coisa de fraco, de marica, “isso é uma gripezinha”, ele não é um acidente na vida da gente...ele é o chefe... foi eleito pelos brasileiros”, lamentou.

Mas o sanitarista também não poupou políticos de outros partidos ao longo da conversa. Para ele, por exemplo, foi “burrice” decretar feriado no município de São Paulo sem discutir com cidades vizinhas e com o governo do Estado. “Eu respeito o [Bruno] Covas, mas tinha que ter conseguido convencer o governador a pensar diferente”, opina. Em vez de incentivar as pessoas a relaxar neste momento, Vecina acha que era preciso fechar tudo.

Sem “abaixar as calças” para a economia

“A economia tem que se f.... nessa hora, com o devido respeito, porque estão morrendo pessoas”, defende o especialista. "Não tem outro jeito."  Ele cita o exemplo de Araraquara, que conseguiu fazer um bom isolamento social recentemente. E o de Portugal, que estava numa situação crítica e, depois de um lockdown rígido, por mais de um mês, agora está melhor que seus vizinhos. Para Vecina, é preciso que haja um isolamento social duro no Brasil, por mais de 30 dias. E, depois disso, adotar o esquema “abre, fecha, abre, fecha”.

A única coisa que ele acredita que deve ser evitado ao máximo é o fechamento das escolas, uma vez que as crianças já sofreram muito no ano passado, e educar depende de convivência social, acima de tudo. Na visão do sanitarista, é preciso que cada escola decida, com sua associação de pais e mestres, quem pode ir e quem vai ficar em casa. Ao dar sua opinião, o médico aproveitou para criticar os professores que têm se manifestado contra as aulas presenciais.  “O caixa do supermercado, o motorista de ônibus, eles podem correr o risco? (...) O sindicato ter essa posição eu entendo. Mas os professores terem essa posição eu não consigo entender.”

O que esperar de abril e do resto do ano?

Em todo o ano passado, o Brasil teve 200 mil mortes. Nos últimos 75 dias, foram mais 100 mil mortes. Isso significa que em setembro o país pode chegar a meio milhão de vidas perdidas. “O número de casos está começando a cair. Quando cai o de mortos? Quando cair o de internações. E cada internação é de 15, 20 dias. Então o que acontece agora vai se refletir no número de mortes daqui a 20 dias, se esses políticos idiotas não resolverem abaixar as calças para a economia.”

Vecina informa que só em maio é que a Fiocruz e o Instituto Butantan vão atingir a “velocidade de cruzeiro” na entrega de vacinas. A partir de então, teremos 45 milhões de doses por mês, sendo que o Brasil tem condições de aplicar 60 milhões por mês “com o pé nas costas e as mãos amarradas”, nas palavras dele.

A Fiocruz e o Butantan compraram 350 milhões de vacina. Quando termina a entrega? "Se não tivermos percalços, em janeiro de 2022", estimou. Além disso, temos 40 milhões doses da Astra Zeneca através Covax, da OMS. Também 100 milhões de doses da Pfizer, que o [Eduardo] Pazuello [ex-ministro da Saúde] diz que comprou, mais 38 milhões de doses que teria comprado da Janssen.

“Se tudo isso chegar, nós terminamos de vacinar os 165 milhões de brasileiros com mais de 18 anos – que são o alvo nosso – até novembro”, calculou. Aí faltará vacinar as crianças e os jovens. “Mas, a partir de outubro/novembro, já vai acontecer o que aconteceu em países como Israel e Escócia, que é uma queda nos casos novos. SE não tivermos novas variantes, e SE as vacinas fizerem efeito contra as variantes.”

“Desvelando o véu da desigualdade”

Para o sanitarista, o coronavírus veio nos alertar sobre o que estávamos fazendo – destruindo a Terra e tratando nossos semelhantes de maneira inaceitável. Ele entende que não faz sentido exigir que alguém perca 4h por dia no trânsito para ir trabalhar, ou faça viagens intermináveis para ter duas horas de reunião. Ele cita o exemplo da escravidão, que foi considerada normal até 1.888 e compara: “Hoje nós temos um problema semelhante àquele, que é a desigualdade, e nós não a enxergamos como algo anormal”.

A desigualdade foi escancarada com a proporção bem mais alta de negros e pardos que morreram de Covid-19, não apenas no Brasil, e com o fato de a maioria da população imunizada, até agora, ser branca. Vecina também considerou absurda a iniciativa de “meia dúzia de idiotas” que propuseram comprar vacinas para o sistema privado e, assim, “poupar” o SUS (Sistema Único de Saúde). Para o médico, a medida seria tão injusta quanto permitir que ricos tenham prioridade na fila de transplantes.

Sobre o fato de grandes multinacionais terem deixado claro que estão negociando apenas com governos, Vecina respondeu que elas têm uma dívida imensa com a sociedade. Mas certas empresas, como a Bharat Biotech (que negociava com empresas privadas no Brasil), teriam outra ética. Ele falou que a Índia tem 20 indústrias farmacêuticas que são ótimas, e outras 2.980 que “são um lixo”. Essa minoria seria parte do processo produtivo das multinacionais, que terceirizam porque na Índia a mão de obra é barata e não há compromissos com o meio ambiente. O médico também ressaltou que a Bharat Biotech, durante a vistoria da Anvisa, demonstrou ter problemas de esterilização de vacina, que é algo básico.

“Brasil não exigiu nada demais”

O ex-diretor garante que não houve demora, nem atuação política por parte da Anvisa para retardar a aprovação de qualquer vacina. “Quero lembrar que uma documentação dessas tem mais de 10 mil páginas. (...) O que uma agência faz é comprovar tudo o que foi feito. Só. Burocracia? Pode chamar do que quiser. Mas garantir que as boas práticas foram cumpridas é o fundamento”, justifica. Ele ressalta que aprovar vacinas é mais complicado que medicamentos, já que são indicados para pessoas saudáveis.  

E quanto à Sputnik V? O médico disse que a ideia da vacina é brilhante, tanto que a Astra Zeneca/Oxford está testando a possibilidade de usar um vetor diferente na segunda dose, assim como o Instituto Gamaleya, na Rússia. (Uma das hipóteses para eficácia mais baixa do imunizante da Astra Zeneca é que o organismo desenvolveria uma resposta não apenas ao pedaço do coronavírus, mas também ao vetor utilizado). Por que a Sputnik ainda não teve uso emergencial aprovado? Porque faltam documentos.

O professor enfatizou que o Brasil é o único país emergente a fazer parte de um seleto “clube” de 32 países com agências sanitárias de excelência. E nenhum dos 31 aprovou a Sputnik até agora, justamente pela ausência de dados completos sobre a terceira fase de estudos clínicos.

Nem o Butantan foi poupado

Para Vecina, o único episódio em que permitiu algum tipo de questionamento sobre a postura política da Anvisa foi quando houve a suspensão temporária dos testes com a CoronaVac após o anúncio de uma morte. "O Butantan também não é flor que se cheire. Eu trabalhei lá como assessor do conselho, eu sei o que eu estou falando", alfinetou. O instituto paulista teria mandado um e-mail para informar que um participante do estudo clínico havia morrido, sem dar maiores detalhes. Imediatamente, a agência suspendeu a pesquisa. Na concepção do ex-diretor, faltou ligar e se informar sobre o ocorrido. Assim que soube, mais tarde, que o sujeito havia tomado placebo e que as evidências apontavam para suicídio, a suspensão foi cancelada.

“Sou um cara de esquerda, não da esquerdalha”

No meio da live, um espectador perguntou o que Vecina acha da ideia de “quebrar a patente”, ou melhor, aprovar o licenciamento compulsório das vacinas de Covid, uma maneira de permitir que países pobres e inclusive o Brasil possam produzir os imunizantes e ampliar seu acesso à população.

O país ficou famoso pelo licenciamento compulsório do efavirenz, um medicamento anti-HIV, durante o governo Lula. Mas Vecina respondeu que “essa história foi mal contada, até hoje está mal contada”. Segundo ele, o Brasil só tomou a iniciativa porque uma pessoa na Índia havia conseguido “copiar” o produto. “Mas não conseguimos fazer a bioequivalência. Usamos outros caminhos depois, tivemos que negociar com a Merck”, revelou, referindo-se à detentora da patente.

O especialista deixou claro que, para fazer a “quebra de patente”, é preciso contar com uma grande equipe de cientistas que façam a engenharia reversa, o que no caso de um produto biológico, como as vacinas, levaria cerca de cinco anos. Só depois é que se pode apresentar todos os argumentos para a medida e, então, fazer o licenciamento compulsório. “Tudo isso é diplomacia. Dá pra fazer, mas é preciso dominar a tecnologia”, declarou, para, em seguida, pontuar que é de esquerda, mas não "da esquerdalha". 

Não perca a íntegra da live: