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Polifarmácia: um mal (às vezes) necessário

De acordo com um estudo feito nos EUA, 87% dos idosos usavam pelo menos um medicamento e 36% cinco ou mais - iStock
De acordo com um estudo feito nos EUA, 87% dos idosos usavam pelo menos um medicamento e 36% cinco ou mais - iStock

José Renato G. Amaral Publicado em 14/07/2021, às 14h50

Um dia desses, durante uma visita com os residentes no hospital, estávamos conversando sobre determinados medicamentos, hoje esquecidos, mas que revolucionaram o tratamento de diversas doenças. A visita era liderada por um colega que foi meu professor e, por isso mesmo, tinha um conhecimento maior sobre a história recente da Medicina (até por ter sido graduado numa época em que havia muito menos drogas). A maioria desses remédios “revolucionários” hoje está superada por similares mais vantajosos; não estávamos defendendo seu uso, apenas fazendo uma espécie de justiça histórica.

Atualmente temos opções melhores do que vinte ou trinta anos atrás para tratar velhos problemas, como diabetes, hipertensão, doença coronariana, úlcera péptica, depressão, esquizofrenia etc. Não apenas temos medicamentos com melhor perfil de segurança e eficácia como mais opções deles. E dispomos de classes de fármacos inteiramente novos, como os imunobiológicos ou a maioria dos antivirais.

O outro lado...

O outro lado dessa história é o crescente consumo de remédios por parte da população, que apesar de não representar, necessariamente, um avanço, segue uma tendência de escalada. Um estudo americano já não tão recente demonstrou que, com base em dados de 2010-2011, 87% dos idosos usavam pelo menos um medicamento e 36% deles recorriam a cinco ou mais drogas, prática que é denominada polifarmácia (o uso de dez ou mais medicamentos é chamado polifarmácia excessiva).

Quando se torna um problema?

A polifarmácia é um problema por diversos motivos, talvez o principal deles seja a limitação da capacidade do organismo humano absorver, metabolizar e excretar vários medicamentos simultaneamente sem que um interfira no outro ou que seu uso conjunto não seja potencialmente problemático. A partir de cinco remédios vai se tornando virtualmente impossível que não haja nenhuma interação entre os fármacos. 

Como em tantos outros aspectos, o idoso é mais sensível à polifarmácia porque o envelhecimento afeta a absorção, a distribuição no organismo, a metabolização e a excreção de remédios. Por constituírem a parcela da população que mais apresenta doenças crônicas, os idosos são os maiores usuários de polimedicação. Nesse sentido, a polifarmácia é muito associada à iatrogenia, que é o evento adverso decorrente de uma intervenção na saúde. 

Os idosos são os mais vulneráveis e os mais expostos por possuírem menos robustez para tolerar o mau efeito - e também são os que mais demandam ações diagnósticas ou terapêuticas. Nem toda polifarmácia é iatrogênica, mas o efeito adverso de medicamentos continua sendo o tipo mais comum de iatrogenia.

A esta altura, o leitor que usa ou conhece alguém que usa cinco ou mais medicamentos deve estar devidamente preocupado. Recomendo que tome um calmante; digo, que leia até o fim. É preciso reconhecer que, em muitos casos, a polifarmácia é inevitável.

Vamos a um exemplo bem banal: um portador de síndrome metabólica, que, sumariamente, é a combinação de obesidade, hipertensão, diabetes (ou pré-diabetes) e colesterol elevado. É um conjunto de condições associadas à predisposição genética e/ou estilo de vida. Sua incidência atinge até 40% em determinadas populações acima dos 60 anos e o principal problema que traz é o elevado risco de doença cardiovascular (como infarto ou derrame), pois todas concorrem para o adoecimento dos vasos sanguíneos - a aterosclerose. 

Confira:

É quase impossível controlá-las à luz do que atualmente consideramos como monitoramento adequado sem, pelo menos, um medicamento para a pressão, um para a glicemia, um para os lipídeos e um para diminuir o risco de trombose. Já estamos com quatro. Na prática, dificilmente se obtém o bom controle de pressão arterial ou glicemia com apenas um medicamento, então a regra para esses casos é a polifarmácia.

E outros tantos exemplos podemos dar: tratamento da insuficiência cardíaca, doença coronariana, dor crônica com depressão associada etc. Nesse caso, somos forçados a admitir que, no cenário atual (isto é, com o conhecimento e os medicamentos hoje disponíveis), a polifarmácia é, em muitos casos, um mal necessário ou, se preferirem, uma conduta que passa pelo crivo do risco-benefício. O que não significa que qualquer polimedicação seja adequada  ou mesmo inofensiva. 

Há uma situação que se chama paradoxo risco-tratamento

Funciona assim: o médico atende a queixa de uma paciente que já toma muitos medicamentos (imagine uma senhora de 75 anos, com síndrome metabólica, dor crônica nos joelhos e uma arritmia), e tenta pelo menos não aumentar muito o número de remédios, pois sabe que isso é um problema. 

Nesse processo, algumas condições podem permanecer subtratadas, como, por exemplo, osteoporose, depressão ou indicação de anticoagulação (caso ocorram, claro). Essas condições “saem do foco”, porque tratá-las implicaria em usar demais medicações sem eventualmente solucionar o problema principal do paciente. Isso ocorre em até 43% dos indivíduos sob polifarmácia: muito remédio e, ainda assim, tratamento incompleto.

Atualmente, dispomos de diversas diretrizes terapêuticas e também de listas de medicamentos a serem ou não usados em determinadas condições. A polifarmácia é inevitável em muitos casos. Já a prescrição de fármacos potencialmente inapropriados ou sem comprovação de eficácia não.

Mesmo em pacientes que estão “indo bem”, a revisão periódica criteriosa dos medicamentos em uso é fundamental para a boa assistência. Muitos remédios permanecem ocupando as receitas pela chamada “inércia terapêutica”, um jargão médico para o famoso “em time que está ganhando não se mexe”. Além disso, sempre que possível, o tratamento não farmacológico deve ser encorajado. Para algumas condições ele será muito mais eficaz que qualquer medicamento. A disponibilidade de muitos remédios é um avanço excelente, mas deve ser apreciada com moderação.

* José Renato Amaral - Clínico e geriatra, médico do Hospital das Clínicas da FMUSP, do Hospital Nipo-Brasileiro e do Hospital Sírio-Libanês. Graduado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Residência Médica em Clínica, em Geriatria e Gerontologia pela FMUSP. Especialista em Clínica Médica pela Sociedade Brasileira de Clínica Médica e em Geriatria pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. Médico assistente do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas da FMUSP. Médico do corpo clínico do Hospital Sírio-Libanês (Núcleo Avançado de Geriatria). Coordenador dos cursos teóricos de extensão universitária em Geriatria da Disciplina de Geriatria da FMUSP. [email protected]