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"Meus testículos não desceram": entenda o que é criptorquidia

Criptorquidia é uma alteração genital comum, que afeta até 45% dos meninos que nascem prematuros - iStock
Criptorquidia é uma alteração genital comum, que afeta até 45% dos meninos que nascem prematuros - iStock

Meu nome é Gabriel*, tenho 35 anos, e meus testículos não desceram, algo chamado de criptorquidia bilateral. O grande problema é que meus pais nunca procuraram um médico para avaliar a situação e vivo hoje nesta condição. É muito estranho escrever sobre algo que sempre escondi, pois quando contei pra uma pessoa, ela espalhou pra todo mundo, e muita gente tirou sarro da minha cara na época, e não foi nada legal.

Só tive noção mesmo do problema que tinha quando adolescente, e me vi diferente dos outros meninos, que ficavam mais altos e mais fortes, enquanto eu, com 14, 15 anos,  tinha aparência de 10. Por que não vi nada diferente antes da adolescência? Pois sempre fui tratado como “normal” por minha mãe e meu parentes (talvez por ignorância, no sentido de falta de conhecimento sobre que o problema poderia gerar em minha vida). Sempre achei eu era apenas magro demais.

Eu chorava muito, quase todos os dias, porém sempre escondido, porque não queria que minha mãe se achasse culpada por algo, mas dentro de mim, sempre a culpei por ela nunca ter procurado ajuda médica, e isso me deixava com muita raiva. Isso desencadeou vários problemas em nosso relacionamento.

De certa forma, eu estava certo, pois a displicência dela e o descaso de meu pai me deixaram com várias marcas emocionais. E todo esse sofrimento, essa carga de sentimentos ruins, de inferioridade, de rejeição por ser diferente, eu carreguei sozinho (nesta época, eu tinha mais ou menos 1,60 e pesava uns 40 kg, fui até dispensado do serviço militar obrigatório por conta do peso, o que foi um alívio, pois tinha muito medo de alguém saber o que tinha, ou melhor, o que não tinha). Nas saídas com os amigos, pra jogar bola, ou viajar, eu normalmente tomava banho em banheirão, sempre me escondia, sempre dava um jeito de por último. Até com roupas tinha preocupação, de sempre usar calças e bermudas mais folgadas.

Quando completei 18 anos, fui procurar um nutricionista, sozinho, ninguém foi comigo. Na consulta ele me perguntou sobre várias coisas, e ao final, perguntou se eu tinha algo mais a dizer, foi quando informei sobre o que tinha. Ele então me encaminhou a um endocrinologista, da mesma clínica. Na consulta com o endócrino, ele me mandou imediatamente para um urologista, que de pronto me avaliou, e disse que eu precisaria fazer uma cirurgia.

Esta cirurgia seria para averiguar se ainda havia possibilidade de que os testículos ainda pudessem ser colocados no saco escrotal. Fiz a cirurgia após alguns meses, pelo SUS. Fiz alguns exames antes, que identificaram deficiência de várias coisas, além de uma idade óssea de 10 anos, sendo que tinha 18.

Por conta do tempo que fiquei sem me levarem ao médico, os testículos não puderam ser aproveitados, pois não houve desenvolvimento. O médico então os retirou, para que não pudessem desencadear um câncer. Foi bem doloroso ouvir aquilo, pois até então era uma esperança que eu tinha, de ser igual aos outros meninos.

Depois disso, iniciei um tratamento hormonal, que faço até hoje, e farei pelo resto da minha vida, com injeções de testosterona. Meu corpo foi se desenvolvendo, comecei a crescer, chegando a 1,77, peguei mais massa muscular, mas continuo com cara de mais novo, normalmente me dão 26, 27 anos.

Com 25 anos, busquei novamente o mesmo urologista, que havia me informado sobre uma cirurgia de implante de silicone. Juntei o dinheiro, que na época custou R$5.000. A cirurgia ocorreu bem, foi implantado o tamanho menor (pretendo mudar, mas o médico não acha necessário, e disse que parece normal, como qualquer outro natural).

Tive minha primeira namorada nesta época, contei pra ela após um tempo de relacionamento. Ela pediu um tempo, pois tinha muita vontade de ter filhos, mas depois aceitou. Após dois anos de namoro terminamos, e ela jogou na minha cara que tinha me aceitado, isso foi bem pesado pra mim, pois ainda vivia, e ainda vivo uma insegurança com meu corpo.

Tive, então, outra namorada, que trabalhava na área de saúde, estava no início do curso. Foi quando, em uma conversa, ela me falou sobre esse assunto, de homens que não tinham testículos, achando isso muito bizarro. Aquela atitude me deixou muito mal, após alguns meses eu terminei, pois não conseguiria confiar e contar sobre isso para ela.

Após esse tempo todo, e sofrendo sozinho. Para alguém que foi criado com a crença de que Deus responde nossas orações, essa foi minha oração, por todos esses anos, mas ela não foi, e nunca será respondida, mesmo após ter colocado o implante, eu não me sinto igual a outros homens, eu não posso ter filhos, não posso confiar nas pessoas, pois ela vão rir de mim. Sempre tive essa esperança de uma cura milagrosa, mas ela não veio, o que me deixava mais triste ainda.

Só tive coragem de desabafar uma vez. Há uma pessoa muito amiga, que estava me vendo pra baixo, me mandou mensagem, disse que quando quisesse conversar que ela estaria ali (ela é psicóloga também). Após alguns dias a procurei, e contei toda minha história, com muito mais detalhes do que escrevo aqui, sobre a raiva da minha mãe e familiares, sobre a solidão, sobre os relacionamentos que não deram certo, sobre uma esperança idealizada, foram horas de conversa. Foi um momento de muito alívio. Isso me fez procurar uma terapia, que até o momento nunca tinha feito.

Hoje tenho duas faculdades, e iniciei um mestrado, sou coordenador em uma grande empresa da minha cidade, e dou aula numa faculdade. Os estudos sempre foram uma forma de saída para minhas angústias, e têm me ajudado na minha busca por uma vida melhor.

Há um conto do Liev Tolstói, sobre um viajante que foge de um animal feroz, e pula num poço seco, só que no fundo do poço há um dragão. Ele se agarra em um arbusto na parede do poço, contudo há dois ratos que estão roendo a raiz deste arbusto. O viajante, então, encontra nas folhas do arbusto uma gota de mel, que ele alcança e lambe. Hoje eu me sinto como esse viajante, em meio à certeza de que esse é meu destino, eu ainda prefiro sentir o sabor da vida, e luto para que meus dias sejam bons, e espero encontrar alguém que me aceite como sou.

Entenda a condição 

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Os testículos ficam no saco escrotal, ou seja, fora do corpo, por um motivo nobre: altas temperaturas fazem mal às células que produzem espermatozoides  (Crédito: iStock)

A criptorquidia, condição relatada por Gabriel (*nome fictício), acomete cerca de 4% dos bebês nascidos a termo e até 45% dos prematuros, segundo a Sociedade Brasileira de Urologia (SBU). É caracterizada pela ausência de um ou ambos os testículos no saco escrotal (criptoquirdia uni ou bilateral, respectivamente).

De forma geral, os testículos, depois de formados, saem de dentro do abdômen e descem até a bolsa escrotal no fim da gestação.“Uma alteração congênita pode fazer com que esse testículo fique preso ou retido no caminho”, explica o médico Tiago Elias Rosito, coordenador do departamento de uropediatria da SBU e professor de urologia pediátrica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É comum que o testículo seja encontrado na região inguinal (virilha), e palpável.

Confira:

Pais e pediatras devem ficar atentos

O médico comenta que, antigamente, muitos médicos acreditavam que os testículos ainda poderiam descer mais tarde, até os 10 anos de idade, e a conduta era apenas observar. “Hoje a visão é completamente diferente: sabe-se que poucos que não desceram ao nascer vão descer depois”, diz. Por isso é muito importante que a alteração seja identificada logo após o parto, pelo neonatalogista.

Os pais, ao trocar as fraldas, por exemplo, também devem verificar se os testículos estão realmente no saco escrotal – eles podem ser sentidos como uma “bolinha” de cada lado. “Pois alguns testículos são retráteis, eles ficam descendo e subindo”, avisa o urologista pediátrico Ubirajara Barroso Jr., chefe de cirurgia reconstrutiva de uretra de crianças e adultos do Hospital da Universidade Federal da Bahia.

Infertilidade e câncer de testículo

Os urologistas comentam que os testículos devem ficar no saco escrotal por uma razão nobre: a temperatura intracorpórea poderia danificar as células que, mais tarde, irão produzir os espermatozoides. É por isso que indivíduos que um dos riscos da criptoquirdia é a infertilidade. O outro é o risco aumentado de câncer testicular – jovens que tiveram a condição devem ser orientados desde cedo a fazer o autoexame e, caso identifiquem eventuais nódulos, avisem os pais e consultem o urologista.

Por todos esses motivos, é importante que as crianças diagnosticadas passem pelo tratamento cirúrgico para levar o(s) testículo(s) para o seu lugar antes de 1 ano de idade, para evitar que a alta temperatura danifique as células germinativas e cause atrofia do órgão.

Se por algum motivo o diagnóstico não é feito na infância, como foi o caso de Gabriel, a indicação é, de fato, remover os testículos retidos para evitar a formação de um tumor. E, como os testículos também abrigam as células produtoras de testosterona, a reposição hormonal se torna necessária. A prótese também é fundamental pela questão estética, para garantir que o jovem não sinta vergonha de se expor.

Garotos devem ir ao urologista

Depoimentos tocantes como o de Gabriel mostram o quanto é importante que jovens tenham acesso ao médico para discutir questões que são comuns durante a puberdade ou a adolescência, quando os garotos começam a se comparar com os pares. "É comum que as meninas sejam levadas ao ginecologista após a primeira menstruação, mas, no caso dos homens, não existe essa instrução em relação à periodicidade", explica o psiquiatra Jairo Bouer. 

Segundo a Sociedade Brasileira de Urologia (SBU), apenas 3,5% dos meninos de 13 a 17 anos vão ao urologista, enquanto 42% das meninas nessa mesma faixa etária já frequentam consultas com o ginecologista. Para piorar as coisas, é muito mais difícil para muitos garotos discutirem assuntos mais íntimos ou relacionados à sexualidade com os amigos, algo que as meninas fazem com maior frequência por questões culturais. 

De modo geral, jovens e adultos devem visitar o médico ao menos a cada dois anos para fazer alguns exames e garantir que está tudo certo com a saúde. Nessas oportunidades, é possível tirar dúvidas, expor receios e aprender sobre prevenção.  "O ideal é não deixar para fazer uma consulta médica só quando existe a suspeita de alguma doença", finaliza Bouer. 

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Tatiana Pronin

Tatiana Pronin

Jornalista e editora do site Doutor Jairo, cobre ciência e saúde há mais de 20 anos, com forte interesse em saúde mental e ciências do comportamento. Vive em NY e é membro da Association of Health Care Journalists. Twitter: @tatianapronin