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“Bookishness”: o fetiche dos livros na era digital

Selfies de leitura: cultivo da cultura  ou (falsa) “carteirada” intelectual? - iStock
Selfies de leitura: cultivo da cultura ou (falsa) “carteirada” intelectual? - iStock

José Roberto Miney Publicado em 21/08/2021, às 10h00

Você já reparou que muita gente faz videoconferência tendo uma estante de livros atrás? Grandes e abarrotadas, pequenas, mas cheias de charme, algumas com vasos de flores ou plantas e objetos decorativos?

Há também quem se valha dos fundos digitais de aplicativos de reuniões à distância, mostrando... belas estantes recheadas de livros. Outros vão até além e colocam papéis de parede, sim, de verdade, mas com estantes de mentira...

No mundo de “fake news”, a febre por “fake books”

Logo no início de 2021, em janeiro, uma influencer francesa ganhou notoriedade por anunciar em suas redes sociais seus livros de luxo, com acabamento esmerado, semelhantes aos que em outros tempos chamávamos de “coffee table books”, mas... falsos. “Très chic” ela, porém as ofertas lembram as de nossos vendedores mais populares. Oferta: dois livros por € 39,80!

Mady tem 2,6 milhões de seguidores no Instagram, 153.000 inscritos no YouTube e mais de 61.300 no Twitter.

Mas, então, o que faz uma influencer com tanta audiência vender livros falsos em suas mídias sociais?

Afinal, o que é “bookishness”?

Esse é o tema de Jessica Pressman, PhD e professora associada de Inglês e Literatura Comparada da Universidade Estadual de San Diego, em seu livro (que merece ser lido e não apenas comprado para pôr na estante), Bookishness – Loving Books in a Digital Age (Bookishness: amando livros em uma era digital, em tradução livre).

A despeito das inúmeras previsões sobre o fim do livro impresso – como já foi feito para o disco de vinil, que parece estar “renascendo” sem nunca ter morrido – o que se vê é sua presença nas redes sociais, como a afirmar sua existência material em um mundo virtual e funcionar, no mais das vezes, como um verniz intelectual para dar um brilho a um tempo em que a cultura agoniza.

O “bookishness”, fetiche ou vício em livros, parece constituir quase uma tribo de devotos, mostrando sua mais recente aquisição acompanhada de comentários, próprios ou de seguidores, mas geralmente superficiais e ligeiros como um vídeo do TikTok. Há aqueles que encenam o ato de ler e outros fazendo “shelfies”, no dizer da autora, um trocadilho com “selfies” (todo mundo hoje sabe o que significa) e “shelfs” (estantes, prateleiras), diante de suas coleções, falsas ou verdadeiras, de livros lidos (vamos dar o benefício da dúvida...) ou não.

A análise de Pressman é mais abrangente, mas o aspecto do “ter, mas não ler” pode ser observado facilmente. Muitos livreiros não raro se queixam de clientes que compram seus livros que mais combinem com a decoração, seja por cor ou por tamanho...

Mas nem tudo está perdido no mundo dos livros

Segundo o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) houve um aumento de 46% na venda de livros no primeiro semestre de 2021, em comparação com o mesmo período de 2020, impactado pela pandemia, restrição ao público e fechamento de conhecidas megastores.

Editores não têm medido esforços para sobreviver em um mercado difícil, com edições mais caprichadas do que nunca, por vezes acompanhadas de brindes, como mapas, brochuras complementares e outros mimos. Esse é o caminho dos clubes de livros, que entregam a seus assinantes suas edições especiais.

Livrarias buscam oferecer, mais do que apenas livros, experiências as mais variadas: apresentações de todos os tipos, cafeterias ou lanchonetes gourmet e outras atrações.

Um exemplo desse exercício de sobrevivência é a livraria Lello na cidade do Porto, em Portugal.

Livraria Lello, na cidade do Porto, em Portugal

Fundada em 1906, se viu às voltas com o risco de fechar as portas quase um século depois. Mas foi salva por um golpe de sorte, ou, melhor dizendo, de magia. Começaram a circular rumores de que o local havia servido de inspiração para J.K. Rowling, autora de Harry Potter. Ela diz nunca ter pisado lá, mas a história pegou.

Ponto de encontro para os fãs, vendas polpudas dos exemplares da série, a livraria recebe milhares de visitantes, que pagam 4 euros para o ingresso. Com o faturamento, a família anexou prédios vizinhos e oferece outros produtos, lembrancinhas e eventos, como contação de histórias.

Não se pode deixar de mencionar também o fenômeno dos “booktubers”. Com milhares de seguidores, fazem resenhas periódicas e até leituras coletivas, promovendo o prazer da leitura nas redes. Só que virtuais, não aquelas para dormir, relaxar ou... ler.

Depois disso tudo, cabe perguntar: o que vai acontecer com o livro impresso? É difícil prever o futuro, mas vale a pena olhar para o passado e ler estes versos, publicados há mais de um século e meio:

Oh! Bendito o que semeia
Livros à mancheia [que cabe na mão, punhado]
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n'alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!”

(Castro Alves, “O livro e a América”, em Espumas flutuantes, de 1870)

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